Capítulo 12 | Novel 'Benção do Oficial do Céu'

setembro 03, 2021 0


CAPÍTULO 12 - O Fantasma de Vermelho; Templos Marciais e Civis são Queimados

Benção do Oficial do Céu






Na face do rapaz, assim como Xie Lian suspeitava, havia um rastro de queimaduras gravíssimas. Contudo, o que realmente chamava a atenção era que, por baixo dos riscos coagulados, havia traços de três ou quatro pequenos rostos.

Estes rostos não eram maiores que as palmas das mãos de um bebê e encontravam-se espalhados de modo tortuoso por suas bochechas e testa. Após serem queimadas, as expressões em cada uma dessas pequenas faces estava contorcida em agonia, como se gritassem de dor. A visão dessas bizarras, amassadas e retorcidas faces humanas no rosto de um garoto comum era, de fato, mais horripilante que qualquer demônio!

Xie Lian sentia como se tivesse sido puxado para dentro de um pesadelo no instante em que viu o rapaz por completo. Um medo tão profundo o paralisou de forma que ele não conseguia se lembrar de ter levantado ou ter noção de sua expressão naquele momento, esta que deveria ser intimidadora. O garoto já se encontrava defensivo antes mesmo de tirar as bandagens. Depois de ver a reação do príncipe, então, deu alguns passos para trás, como se estivesse ciente da inabilidade de Xie Lian de aceitar sua aparência. Ele subitamente cobriu aquela face horrenda novamente e se colocou de pé em um salto, soltando um grito ao correr para dentro da vasta floresta.

Xie Lian finalmente recobrou seus sentidos e exclamou, “ESPERE!”. Ele continuou a chamar o garoto enquanto o perseguia, “Espere! Volte aqui!”.

Mas o deus havia ficado inerte por um bom tempo antes de sair de seu transe, no final das contas. O rapaz obviamente tinha familiaridade com os caminhos da montanha e estava acostumado a fugir pela escuridão, então apenas alguns segundos foram necessários para que desaparecesse por completo. Não importava quantas vezes Xie Lian o chamasse, ele não iria voltar a aparecer. Não havia ninguém por perto para ajudá-lo em sua busca e seus poderes já haviam acabado novamente também, dessa forma não havia como contatar alguém. Ele correu pela montanha,  procurando por quase uma hora inteira, mas obviamente não obteve sucesso.

Uma brisa fria passou por perto e limpou um pouco sua mente. Sabendo que correr por aí sem direção como uma mosca sem cabeça não adiantaria de nada, Xie Lian se forçou a se acalmar.

“Talvez ele volte para levar o corpo de Xiao Ying,” pensou enquanto fazia o caminho de volta ao Templo de Ming Guang. Mas, então, parou em seus passos.

Diversos homens vestidos de preto com expressões sombrias haviam se reunido na floresta atrás do templo e estavam no meio da tarefa de cuidadosamente desamarrar aqueles quarenta e tantos corpos pendurados de cabeça para baixo. Um oficial alto de braços cruzados vigiava a operação da entrada do matagal. Quando virou sua cabeça, pôde-se ver a requintada, porém fria expressão de um jovem. Era Fu Yao. Parecia que ele havia feito uma breve viagem de volta ao reino celeste e trazido consigo um número considerável de mãos do Palácio de Xuan Zhen para ajudar.

Xie Lian estava prestes a abrir a boca, mas foi interrompido pelos sons de passos atrás dele. Nan Feng também havia retornado após levar os aldeões de volta ao vilarejo.

Após observar a situação, Nan Feng olhou para Fu Yao e disse, “Você não havia fugido?”.

Descontente, Fu Yao levantou as sobrancelhas ao ouvir o comentário ofensivo.

Xie Lian não queria que começassem outra discussão, então se intrometeu, “Eu pedi a ele que buscasse por reforços.”

Nan Feng zombou, “Bem, onde estão eles, então? Eu achei que você ao menos pediria para que seu general viesse.”

Fu Yao respondeu compassivo, “Quando voltei ao reino celestial, ouvi que o General Pei Júnior já havia vindo aqui, então não quis incomodar nosso general. Mesmo que o fizesse, provavelmente estaria ocupado demais para vir, em todo caso.” 

Na realidade, baseado no quanto Xie Lian recordava sobre Mu Qing, ele tinha quase certeza de que o outro não viria mesmo que tivesse tempo. Porém, dada as atuais circunstâncias, o príncipe estava cansado demais para se importar.

“Por favor, parem de brigar por um momento e me ajudem a achar aquele garoto enfaixado.”

Nan Feng franziu o cenho, “Ele não estava com você, junto do corpo da garota?”.

“Eu acabei o assustando depois de pedir que ele retirasse as bandagens.”

Fu Yao sorriu de lado, “Por favor, seu travestismo não é tão assustador assim.”

Xie Lian suspirou, “Foi minha culpa por ficar em um torpor. A morte da senhorita Xiao Ying já foi um grande choque para si. Ele provavelmente não aguentou imaginar que eu estava com medo de seu rosto também, então acabou fugindo.”

Fu Yao enrugou o nariz, “Ele é realmente feio dessa forma?”.

Xie Lian respondeu, “Não é pelo fato de ser feio. Ele… tem a Doença do Rosto Humano.”

Ouvindo aquelas quatro palavras, ambos, Nan Feng e Fu Yao, congelaram completamente.

Eles finalmente entenderam por que Xie Lian ficara tão chocado.

Oitocentos anos atrás, uma praga varreu o Reino de Xianle e acabou com a nação. Aqueles que pegavam a doença, primeiramente, teriam pequenas verrugas crescendo por seu corpo e, então, ao que elas se desenvolviam, a pele ficava enrugada. As partes inchadas lentamente se tornavam irregulares, com três entalhos e uma protuberância, assim como… olhos, bocas, narizes. As pequenas expressões, assim, se metamorfoseavam até que eventualmente adquiriam a forma de um rosto humano. Se não fizessem nada, mais e mais rostos humanos cresceriam por seus membros. Dizia-se até mesmo que algumas dessas minúsculas faces, uma vez completamente formadas, podiam chegar a falar e gritar.

A praga foi chamada de Doença do Rosto Humano.

O semblante de Fu Yao passou por uma série de mudanças enquanto abaixava seus braços cruzados. “Isso é impossível! Essa coisa foi extinta centenas de anos atrás! Não há como ter reaparecido!”.

“É impossível eu me enganar,” Xie Lian respondeu apático.

Nan Feng e Fu Yao não podiam refutar. Ninguém podia dizer o contrário quando era Xie Lian falando aquilo.

O príncipe continuou, “Há várias marcas de queimadura em seu rosto, provavelmente ele mesmo as fez para se livrar das faces.”

A primeira reação daqueles que contraiam a doença geralmente era cortar as pequenas faces com facas ou queimá-las com fogo, qualquer maneira necessária para livrar a si mesmos daquele pesadelo.

Nan Feng abaixou a voz. “O garoto provavelmente não é um ser humano comum, então, deve ter no mínimo algumas centenas de anos. Deixando isso de lado, ele é contagioso?”.

Mesmo que aquilo lhe causasse uma severa dor de cabeça, era uma pergunta que Xie Lian considerou calma e logicamente. Assim, ele disse com convicção, “Não. A Doença do Rosto Humano é extremamente transmissível. Se ainda pudesse passá-la, então todos na montanha inteira estariam infectados neste momento, considerando há quanto tempo ele tem se escondido aqui. Sua condição já deve ter sido… curada. Apenas as cicatrizes ficaram.”

Eles não podiam ser negligentes naquela situação. Fu Yao parecia ter certa influência no Palácio de Xuan Zhen e foi capaz de chamar várias mãos capazes para ajudar na busca. Entretanto, não importava quão longe fossem ou quão fundo procurassem na montanha, ninguém conseguiu encontrar rastro algum do garoto. Talvez ele já tivesse deixado a floresta e se embrenhado no meio do mar de pessoas. O melhor que podiam fazer naquela hora era voltar aos céus e esperar por notícias após requisitar ao Palácio de Ling Wen que fizesse uma investigação. Felizmente, o rapaz não era contagioso, mas Xie Lian não conseguia parar de pensar no quão horrendo ele parecia. Se fosse descoberto após deixar as montanhas, era possível que fosse caçado como um monstro! Eles precisavam encontrá-lo e rápido.

Sem mais delongas, Xie Lian tomou o corpo de Xiao Ying em seus braços e desceu a montanha. Já que ainda estava um pouco fora de si, o deus nem ao menos percebeu que a havia levado até a casa de chás até que o dono da loja gritasse consigo. Xie Lian imediatamente se desculpou e saiu dali para confiar o enterro dela a outra pessoa antes de voltar ao estabelecimento. Depois de cuidar de tudo, ele se sentou e soltou um longo suspiro silencioso.

Aquele caso estava finalmente encerrado, mas o príncipe só conseguia pensar que os poucos dias em que havia ascendido pareciam mais longos do que um ano inteiro com ele coletando sucata no reino mortal. Escalar, pular, voar, gritar, fazer acrobacias, disfarçar-se e performar… seus ossos estavam a ponto de colapsar. Mesmo assim, ainda havia muitos mistérios e consequências deixados para trás com que precisavam lidar. Talvez devesse hastear uma bandeira e vagar pelo mundo contando histórias de como catar lixo era melhor que a ascensão.

Fu Yao levantou a bainha de seu robe e sentou ao seu lado. Afinal, não conseguiu se segurar e revirou os olhos. “Por quanto tempo ainda vai usar essa coisa?”.

O sentimento de vê-lo fazer aquele gesto era incrivelmente familiar. Xie Lian finalmente tirou o vestido vermelho e removeu a maquiagem, só então percebendo algo de forma abatida, “Eu conversei por todo aquele tempo com o General Pei Júnior usando este vestido? Nan Feng, por que você não me avisou?”.

“Provavelmente porque você parecia tão feliz usando-o,” Fu Yao respondeu.

Depois de cumprir ordens o dia inteiro, Nan Feng finalmente se sentou para descansar também. “Não se preocupe com isso, General Pei Júnior não vai ligar. Você poderia ter se vestido dez vezes mais estranho que isso e ele ainda assim não se incomodaria ou contaria a alguém.”

Xie Lian estava agradecido por todo o esforço de Nan Feng e lhe serviu uma xícara de chá. Ele ficou pensando o quão sereno aquele oficial parecia mesmo diante da loucura de Xuan Ji.

O príncipe comentou, “General Pei Júnior é certamente muito calmo e centrado, deveras impassível.”

Nan Feng tomou um gole de chá e disse, “Ele pode parecer educado e afins, mas é exatamente como seu ancestral — difícil de se lidar.”

Xie Lian podia ver aquilo. Inacreditavelmente, Fu Yao também concordou.

“General Pei Júnior é um novo ascendido de algumas centenas de anos atrás, mas tem facilidade em navegar a favor dos ventos e subiu os degraus bem rápido. Quando foi nomeado como vice general pelo General Pei, não tinha ao menos vinte anos de idade. Sabe o que ele fez?”.

“O quê?” Xie Lian perguntou.

“Massacrou uma cidade inteira.” Fu Yao respondeu friamente.

Xie Lian pareceu imerso em pensamentos ao ouvir aquilo, mas não ficou surpreso. Dentro da Corte Celestial, reis e generais caminhavam livremente. Toda a questão de lutar pelo bem e proteger a terra de alguém era considerada nada menos do que heroica e, para que pudesse ascender, era preciso primeiro se tornar um herói. No entanto, o caminho do heroísmo era sempre regado a sangue.

Fu Yao concluiu, “Na Corte Celestial, não há muitos dignos de confiança e que valha a pena manter uma relação.”

Xie Lian achou engraçado a forma que Fu Yao falava como se soubesse por experiência própria, ele provavelmente já havia sido importunado por diversas vezes naquele local. Contudo, apesar do príncipe ter ascendido por três vezes, quando o assunto era entender esses deuses, ele na verdade deveria saber menos do que aqueles dois oficiais juniores.

Nan Feng, por outro lado, parecia discordar com veemência. “Não faça tais comentários difamatórios, existe o bem e o mal em todo lugar. Ainda há um bom número de oficiais confiáveis nos céus.”

“Ha! Oficiais confiáveis? Você quer dizer seu general?” Fu Yao zombou.

Nan Feng respondeu, “Eu não sei quanto ao meu general, mas certamente não é o seu!”.

Xie Lian já estava há tempos acostumado com aquele tipo de situação. E com tantas outras coisas em mente, ele não tinha energia o suficiente para separá-los.

O caso no Norte estava concluído. O príncipe retornou aos céus, reportou sobre o garoto enfaixado para o Palácio de Ling Wen e pediu por uma busca para encontrá-lo. 

Ling Wen aceitou a requisição com uma expressão sombria e disse, “Eu farei o meu melhor para achá-lo. Honestamente, eu não imaginava que esta missão no Norte mexeria em uma grande casa de marimbondos. Obrigada por seu trabalho duro, Sua Alteza.”

O outro respondeu, “Eu preciso agradecer aos dois oficiais juniores que se voluntariaram para me ajudar e ao General Pei Júnior também. Sou verdadeiramente grato.”

“Todo este problema de relacionamento ruim foi causado pelo próprio velho Pei, então é claro que Pei Júnior teria de lidar com isso. Ele está acostumado, não precisa agradecê-lo,” Ling Wen afirmou. “Se Sua Alteza não estiver ocupado, por favor entre na matriz de comunicação. Em breve, teremos uma reunião para discutir os acontecimentos recentes.”

Xie Lian certamente possuía diversas perguntas às quais queria respostas. Após deixar o Palácio de Ling Wen, ele vagou por um tempo até encontrar uma pequena ponte de pedra. A ponte cruzava um minguado córrego borbulhante com águas cristalinas. Era possível ver as nuvens flutuando abaixo da água e, além de ambos, o córrego e as nuvens, também as montanhas e cidades do reino mortal.

“Este parece um bom lugar,” pensou consigo mesmo.

Assim, ele sentou sobre a ponte, murmurou a senha e entrou na rede de comunicação.

Era um daqueles raros momentos em que a matriz de comunicação estava agitada e vivaz, com vozes ecoando e reverberando de todas as direções. A primeira coisa que ele conseguiu ouvir foi Feng Xin xingando.

“Puta merda! Vocês já escolheram a montanha para selá-la? Aquela Xuan Ji é uma psicopata, não importa o que perguntemos, ela apenas fica gritando que quer ver o General Pei e não nos diz nada sobre a localização do Fantasma Verde Qi Rong!”.

General Pei Júnior respondeu, “General Xuan Ji sempre foi teimosa e intensa.”

Feng Xin berrou de volta, furioso, “General Pei Júnior, o General Pei já está de volta? Deixe que ela o encontre. Então, pegue a localização do Fantasma Verde e livre-se dela de uma vez!”.

Feng Xin nunca fora bom com mulheres, Xie Lian ficou com pena por terem dado a tarefa de interrogar a fantasma justo a ele.

Pei Júnior afirmou, “Não importa, mesmo que eles se encontrem ela apenas ficará mais insana.”

Uma voz soou entre eles, “Outro caso de cadáveres pendurados… Qi Rong é certamente grosseiro. Repugnante.”

“Mesmo o reino fantasma o acha vulgar. Ele é realmente o maior asinino!”.

As palavras dos oficiais voavam de um lado para o outro completamente integradas dentro da matriz, era claro que todos estavam familiarizados uns com os outros. Como um recém-chegado que havia acabado de ascender após uma ausência de oitocentos anos, Xie Lian deveria se manter despercebido e ficar em silêncio. Contudo, ele não conseguiu se segurar.

O príncipe perguntou, “Pessoal, qual o sentido por trás dos cadáveres pendurados? O Fantasma Verde Qi Rong estava naquela área também?”.

Xie Lian raramente falava na matriz de comunicação, então sua voz era desconhecida para muitos e os oficiais não sabiam se deveriam responder. Surpreendentemente, o primeiro a retorná-lo foi Feng Xin. 

“O Fantasma Verde Qi Rong não estava na Montanha Yujun. Entretanto, os corpos pendurados eram uma oferenda que Xuan Ji fez para ele, seguindo suas ordens.”

“Xuan Ji é subordinada do Fantasma Verde?”, Xie Lian questionou.

“Correto,” General Pei Júnior respondeu. “Xuan Ji faleceu há centenas de anos. Ela possuía um ressentimento profundo, mas não tinha poder algum para causar tamanho caos até alguns séculos atrás, quando o Fantasma Verde Qi Rong se interessou por ela e a colocou debaixo de suas asas. A partir dali, seus poderes espirituais se desenvolveram vigorosamente.”

O que ele realmente queria dizer era que a destruição causada por Xuan Ji não era culpa do General Pei, porque ela não era originalmente forte daquele jeito. Toda a culpa deveria ir para o Fantasma Verde Qi Rong, na verdade, já que fora ele quem a acolhera e lhe dera força para ferir os humanos. Todos já tinham uma opinião formada de que as consequências daquele caso deveriam ser totalmente do General Pei para lidar, mas ninguém se atrevia a dizer aquilo em voz alta. No entanto, ele notou e falou sobre aquilo tão abertamente como lembrete para fazê-los manter suas bocas fechadas e esconder seus verdadeiros pensamentos para si mesmos. 

Xie Lian falou novamente, “A Montanha Yujun foi inspecionada por completo? E o espírito infantil?”.

Desta vez, foi a voz de Mu Qing que soou na matriz. Ele disse em um tom indecifrável, “Espírito infantil? Que espírito infantil?”.

O príncipe, então, pensou que Fu Yao não devia ter relatado todos os detalhes, talvez tivesse mesmo se voluntariado para ajudar em segredo. Assim, sem mencionar o júnior para poupá-lo de problemas desnecessários, Xie Lian explicou.

“Quando eu estava na liteira matrimonial, escutei a risada de uma criança que cantava uma canção de ninar como um aviso. Os dois oficiais juniores que estavam comigo não notaram, o que significa que este espírito infantil deve ter poderes notáveis.”

“Não foi encontrado espírito infantil algum na Montanha Yujun.” Mu Qing afirmou.

Xie Lian estava confuso. Talvez aquela criança fantasma tivesse vindo apenas para alertá-lo? Pensando nisso, de repente se lembrou de outro assunto que esteve em sua mente aquele tempo todo.

Ele indagou, “Falando nisso, eu conheci um jovem rapaz que podia controlar borboletas prateadas na Montanha Yujun. Alguém sabe quem poderia ser?”.

A barulhenta matriz de comunicação caiu em um silêncio sepulcral assim que ouviram as palavras. Xie Lian já esperava aquela reação, então simplesmente aguardou uma resposta.

Um momento depois, Ling Wen perguntou, “Sua Alteza, o que o senhor disse?”.

Mu Qing disse friamente, “Ele acabou de falar que conheceu Hua Cheng.”

Após finalmente aprender o nome daquele jovem rapaz de vermelho, Xie Lian sentiu-se inexplicavelmente mais leve. Ele sorriu.

“Então, o nome dele é Hua Cheng? Hm, o nome lhe cai bem.”

O tom de voz do príncipe fez com que todos os oficiais ficassem ainda mais embasbacados. Outro momento se passou antes que Ling Wen limpasse a garganta.

“Hm… Sua Alteza, o senhor já ouviu falar das Quatro Calamidades?”.

“Tenho medo de dizer que não, eu apenas sei sobre os Quatro Grandes Contos,” Xie Lian pensou consigo mesmo.

Os chamados Quatro Grandes Contos se referiam a histórias extraordinárias dos feitos de quatro deuses antes de suas ascensões: o Jovem Mestre que Derramava Vinho, o Príncipe que Adorava aos Deuses, o General que Quebrou sua Espada e a Princesa que Cortou sua Garganta. É claro, o “Príncipe que Adorava aos Deuses” era uma alusão ao poderio marcial do Príncipe Herdeiro de Xianle.

Ser conhecido por um dos Quatro Grandes Contos não necessariamente significava que aqueles eram os mais fortes entre os deuses, e sim que suas histórias eram as mais conhecidas e comentadas entre eles. Xie Lian sempre fora lento em se atualizar sobre as notícias do mundo afora, até mesmo diziam que ele era fora do alcance do mundo exterior e ignorante sobre os assuntos de estado. Ele apenas sabia sobre os Quatro Grandes Contos porque o próprio príncipe era um deles. As Quatro Grandes Calamidades deveriam ser algo que se popularizou depois, mas Xie Lian nunca ouvira falar delas, de fato. Porém, já que incluía a palavra “calamidade” no nome, então não deveria ser nada bom.

“Receio em dizer que nunca ouvi falar sobre elas. O que são as Quatro Calamidades?”.

Mu Qing falou indiferente, “Sua Alteza passou tantos séculos no reino mortal e mesmo assim é tão mal informado. Estou realmente curioso sobre o que você andou fazendo por todo esse tempo.”

Comendo, dormindo, performando, coletando sucata, hm?

Xie Lian sorriu, “Não é fácil ser mortal. Há diversas coisas que me mantinham ocupado e todas eram bastante complexas. Não é menos difícil que ser um oficial celeste.”

Ling Wen se pronunciou, “Por favor, lembre-se, Sua Alteza, as Quatro Grandes Calamidades são: o Água Negra que Afunda Navios, o Lanterna Verde Andarilho da Noite, a Calamidade Vestida de Branco e a Flor Tingida pela Chuva Escarlate. Eles são os quatro reis do reino fantasma, que causam dores de cabeça infindas a todo o reino celestial.”

Humanos se tornavam deuses quando ascendiam e fantasmas quando caíam.

Os deuses criaram os céus para residir, levantando uma grande barreira que os separava dos mortais. Eles observavam tudo de cima e comandavam além do alcance de todos. O reino fantasma, por outro lado, não era separado do reino mortal. Monstros, demônios, fantasmas e mortais compartilhavam a mesma terra. Alguns fantasmas se escondiam na escuridão e outros fingiam ser humanos enquanto andavam entre os homens e viviam em sociedade disfarçados. 

Ling Wen continuou, “Dizem que o Água Negra que Afunda Navios é um fantasma aquático. Apesar de ter sido classificado como 'Supremo', ele mantém um perfil discreto e raramente causa confusão. Não foram muitos que já conseguiram vê-lo, então o deixemos de lado por hora.”

“O Lanterna Verde Andarilho da Noite se refere àquele vulgar Fantasma Verde Qi Rong, que gosta de pendurar cadáveres. Ele é o único dos quatro que ainda não é um Supremo, mas provavelmente está incluído nesta lista por estar sempre criando problemas e importunando a todos. Ou porque quatro nomes são mais fáceis de lembrar, então está ali apenas pelos números. Também é insignificante.”

“Sua Alteza deve estar familiarizado com a Calamidade Vestida de Branco. Ele também é conhecido como ‘O Sem-Rosto Branco’.”

Ao ouvir aquele nome, Xie Lian, que estava sentado na ponte de pedra, subitamente sentiu uma alfinetada em seu coração que se espalhou por todo o seu corpo. Suas mãos começaram a tremer e ele inconscientemente as fechou em punhos.

É claro que lhe era familiar.

Diziam que quando um Supremo surgia, poderia destruir uma nação inteira e jogar o mundo no completo caos. O primeiro país que o Sem-Rosto Branco destruiu foi Xianle.

Xie Lian permaneceu em silêncio e deixou Ling Wen continuar.

“De qualquer modo, o Sem-Rosto Branco já foi derrotado. Mesmo que ele ainda existisse em algum lugar neste mundo, seria a última pessoa que alguém esperaria roubar os olhares.”

“Sua Alteza, as borboletas prateadas que o senhor viu na Montanha Yujun são também chamadas de Borboletas Espectrais. O mestre delas é o último dos quatro e aquele que nem mesmo os céus esperam cruzar seu caminho — a Flor Tingida Pela Chuva Escarlate, Hua Cheng.”

No reino celestial, “notório” era a palavra ideal para descrever o Imperador Marcial Celeste e o Príncipe Herdeiro de Xianle. Apesar do sentido de ‘notoriedade’ ser completamente diferente entre os dois, ela ainda ressonava igualmente. Contudo, no reino fantasma, havia apenas um que poderia ser chamado de “notório”, e este era Hua Cheng.

Se entrar no templo de um deus e observar como está vestido e as armas que porta, você vai provavelmente entender um pouco sobre sua história. Se quiser saber mais além, simplesmente ouça as fábulas, peças e contos passados de boca em boca. O passado mortal de uma divindade era bem documentado. Fantasmas, por outro lado, nem tanto. Que tipo de pessoas eram quando estavam vivos ou suas atuais configurações eram um completo mistério.

O nome Hua Cheng era obviamente falso e sua aparência provavelmente não era a real também. Segundo os rumores, ele algumas vezes era um garoto distorcidamente caprichoso com várias mudanças de humor, outras era um jovem rapaz gentil e elegante, e ainda umas em que era um belo sedutor com um coração perverso e enganador, qualquer boato valia! Mas sobre sua real forma, a única coisa da qual tinham realmente certeza era de que ele vestia roupas vermelhas como bordo e geralmente aparecia junto de uma chuva de sangue, acompanhado de borboletas prateadas que se escondiam sob suas mangas.

E quando o assunto era o passado de Hua Cheng, este tinha infinitas versões diferentes. Alguns diziam que ele havia nascido deformado sem o olho direito, sendo desprezado e humilhado desde pequeno, então era cheio de ódio pelo mundo; outros, que era um jovem soldado que morreu por seu país em uma batalha perdida e acabou por vagar pela terra como um espírito regado em ressentimento; e havia ainda os que acreditavam que ele era um louco atormentado pela perda de seu único amor; diziam até mesmo que ele um monstro. A teoria mais absurda era a de que, supostamente — apenas supostamente! —, Hua Cheng havia ascendido e virado um deus, mas imediatamente pulou de volta por vontade própria e se tornou um fantasma. Porém, aquela era apenas uma versão não muito difundida. Ninguém sabia se era verdade ou não, e não muitos acreditavam naquilo. Deveria ser falso, no entanto, porque mesmo se fosse verdade seria uma vergonha gigantesca para os céus que alguém preferia negar o papel de oficial celeste e ao invés disso se tornar um fantasma. De qualquer modo, quanto mais histórias surgiam, mais envolto em mistérios ele ficava.

Havia muitas razões para os deuses temerem Hua Cheng. Por exemplo, seu comportamento era imprevisível, algumas vezes ele começaria um massacre a sangue frio e em outras, faria atos de benevolência sem explicação. Ele também possuía uma influência inacreditável no reino mortal e tinha legiões de seguidores.

É isso mesmo. Mortais adoravam aos deuses para pedir por bençãos e proteção para que pudessem escapar dos males do reino fantasma, e era por esta razão que as divindades tinham tantos adeptos. Entretanto, Hua Cheng, um fantasma, dispunha de um número tão grande de seguidores na terra que poderia facilmente instigar o mundo sem precisar de mais ninguém.

Esta é uma história que precisa ser contada.

Quando Hua Cheng apareceu pela primeira vez, acabou por fazer algo notório.

Ele abertamente desafiara trinta e cinco oficiais celestes. O desafio consistia em lutar contra os deuses marciais e debater com os civis. Trinta e três dos trinta e cinco desafiados acharam aquilo ridículo, mas estavam enfurecidos o suficiente por sua audácia para aceitar a proposta, pensando que poderiam unir forças para dar uma lição naquele pequeno diabrete.

Os primeiros a enfrentá-lo foram os deuses marciais.

Os deuses marciais eram os mais fortes de todos os oficiais celestes, cada um com uma boa quantidade de seguidores e muito poder. Enfrentar um fantasma recém-formado seria uma vitória fácil.

Porém, para sua surpresa, a batalha foi uma completa aniquilação. Mesmo suas potentes armas foram transformadas em frangalhos pela bizarra cimitarra de Hua Cheng.

Foi apenas depois da derrota que eles descobriram que Hua Cheng havia nascido do Monte Tong’lu[1].

O Monte Tong’lu era um vulcão, o interessante daquele local é que era onde se encontrava uma cidade nas montanhas conhecida como Gu[2]. A Cidade de Gu não era um lugar onde as pessoas cultivavam veneno, mas sim, a urbe inteira era completamente tóxica.

A cada algumas centenas de anos, dezenas de milhares de fantasmas viajavam à Cidade de Gu para participar de um massacre entre si até que apenas um restasse, transformando toda aquela energia diabólica em toxinas. Geralmente, a chacina acabava em uma eliminação completa, porém aqueles que eventualmente eram capazes de sobreviver emergiam dali como Reis Fantasmas. Apenas dois fantasmas conseguiram sair da Cidade de Gu nos últimos séculos e, como esperado, ambos se tornaram Calamidades conhecidas.

Hua Cheng era um desses Reis Fantasmas.

Depois de derrotar os deuses marciais, estava na hora dos civis cumprirem o desafio. Certamente, Hua Cheng era ímpar em combate, mas poderia vencer em um debate?

Infelizmente, para os deuses civis, ninguém conseguiu triunfar sobre ele. Hua Cheng podia citar os clássicos e conhecia as obras modernas. Às vezes era educado, às vezes perverso, às vezes teimoso, às vezes incisivo e às vezes evasivo. O fantasma era realmente um grande orador de sofisticação e besteiras. Ele verbalmente abusou dos deuses civis da cabeça aos pés, sobre o passado e o presente, e os enfureceu de tal forma que a cascata de sangue que cuspiram pintou os céus de vermelho.

Hua Cheng ficou famoso da noite para o dia.

O que foi realmente assustador, no entanto, era que, após aquele desafio, Hua Cheng demandou que todos os trinta e três oficiais cumprissem com sua palavra. Antes de começarem, havia sido decidido que se o fantasma perdesse, ele lhes entregaria suas próprias cinzas. E no caso de os deuses perderem, eles teriam de descer dos céus e voltar à terra como mortais. Se não fosse por sua atitude arrogante e aposta decisiva, além da irrefutável convicção dos trinta e três oficiais de que não havia como derrotá-los, eles nunca teriam aceitado tais termos e condições.

No final, todos os deuses participantes desonraram suas palavras e ninguém cumpriu o que fora proposto. Era humilhante quebrar suas promessas, mas quando pensavam sobre o assunto, se apenas um deles fosse derrotado seria embaraçoso, porém se todos sofressem a derrota e a humilhação ninguém perderia a face. Eles podiam até mesmo virar a situação a seu favor e zombar do inimigo! Então, todos chegaram ao tácito acordo de fingir que nada havia acontecido. Mortais esqueciam das coisas rápido de qualquer modo, eles nem se lembrariam daquilo em cinquenta ou mais anos.

Não havia nada errado na visão dos mortais, mas aquilo era completamente inaceitável para Hua Cheng.

Os deuses se recusavam a cumprir suas promessas? Muito bem, então ele lhes daria uma pequena ajuda.

Assim, Hua Cheng queimou cada um dos templos e santuários de todos os trinta e três desafiantes.

Aquilo era a origem dos pesadelos de todos os oficiais nos céus — o fantasma vestido de vermelho incendiando os templos de trinta e três deuses marciais e civis.

Templos e seguidores eram a principal fonte de poder dos oficiais celestes, aonde os seguidores iriam  para depositar sua fé se não haviam santuários? E se eles não rezassem, os oficiais não teriam méritos. A perda massiva de templos e méritos certamente causou uma grande deficiência na administração dos céus. Para reconstruir tudo aquilo levaria no mínimo um século, e mesmo que o fizessem não seria o mesmo de antes. Aquela era uma catástrofe maior do que passar por sua predeterminada Calamidade Divina[3]. O número combinado daqueles templos e santuários passava de dezenas de milhares, mas Hua Cheng fora capaz de destruí-los em apenas uma noite. Como? Ninguém sabia, porém foi o que ocorreu.

Ele era verdadeiramente insano.

Os deuses tentaram convencer o Imperador Marcial Celeste de que aquilo era uma violação, mas não havia nada que poderia fazer. Os próprios oficiais celestiais haviam aceitado seu desafio e suas condições, e Hua Cheng era ardiloso o suficiente para extinguir os templos sem ferir ninguém. Parecia que ele havia cavado um buraco e pedido para os deuses pularem, e estes mesmos abriram a fossa ainda mais antes de se atirar. Então, o que poderiam fazer naquela situação?

Originalmente, os trinta e três oficiais queriam mostrar ao mundo a derrota daquele demônio insignificante, então transmitiram o desafio através dos sonhos de diversos nobres e membros da realeza para mostrar sua força diante de seus mais devotos seguidores. Mas tudo que aqueles figurões viram fora uma derrota miserável. Quando os mortais acordaram, eles prontamente deixaram de lado sua fé pelas divindades celestiais e começaram a adorar ao Rei Fantasma. Os oficiais que haviam perdido tanto seus santuários quanto seus seguidores começaram a ficar cada vez mais fracos, até que foram apagados da existência. Não foi até uma nova onda de ascensões que seus lugares foram reocupados.

Desde então, o nome Hua Cheng era temido pelos céus. Apenas a menção de robes vermelhos e borboletas prateadas era o suficiente para fazê-los suar frio. Alguns temiam que os desafiaria e queimaria seus templos se acabassem de alguma forma causando seu desprazer, alguns haviam sido chantageados para ficar em silêncio porque ele os tinha na palma de suas mãos, e ainda alguns estranhamente o respeitavam por sua vasta influência no reino mortal. Às vezes, eles até mesmo pediam sua assistência para abrir seus caminhos enquanto realizavam suas tarefas.

Assim, os céus temiam, odiavam e respeitavam aquele Rei Fantasma.

Dentre os trinta e cinco deuses que haviam sido desafiados, os únicos que recusaram a proposta foram os generais Xuan Zhen, Mu Qing, e Nan Yang, Feng Xin.

Eles pensaram que aquela disputa estava abaixo de suas reais capacidades e ignoraram o convite. E ao que parecia, ambos haviam tomado a decisão correta. Mas mesmo assim, Hua Cheng não esquecera deles. Muitas patrulhas dos Festivais Zhongyuan[4] acabaram em pancadaria e banho de sangue quando os dois grupos cruzavam um com o outro, e aquelas alucinantes, maníacas borboletas prateadas haviam deixado uma profunda impressão em ambos.

Ouvindo aquilo, Xie Lian recordou-se daqueles efêmeros insetos que dançavam ao seu redor divertidamente. Ele não conseguia vê-los assim como descritos nos rumores.

Elas são realmente tão assustadoras?” O príncipe pensou consigo mesmo. “Não são realmente um tanto… preciosas?”.



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[1] [铜炉] “Tong’lu” significa “forno de cobre”, ou seja, uma grande fornalha.

[2] [毒] “Du”, lido aqui como “Gu”, significa “veneno”.

[3] Deuses têm Calamidades Divinas predeterminadas que eles precisam aguentar e passar de quanto em quanto tempo para tornarem-se mais poderosos. A tempestade de raios é um exemplo, mas também pode ser descer para o reino mortal e passar tantos anos vivendo como um mortal, entre outras.

[4] [中元節] Zhongyuan Jie, ou o Festival dos Fantasmas, é comemorado no décimo quinto dia do sétimo mês do Calendário Lunar (que geralmente cai entre agosto/setembro no Calendário Gregoriano). Isso porque acredita-se que o sétimo mês é o mês dos fantasmas, quando os portões do submundo estão abertos, então os deuses fazem patrulhas mais diligentes. Este festival celebra o submundo, e oferendas são feitas aos mortos para aplacar seus espíritos e ajudá-los a seguir em frente.



Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil


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