Capítulo 15 | Novel 'Benção do Oficial do Céu'

setembro 11, 2021 0

 


CAPÍTULO 15 - Roupas Vermelhas como Bordo; Pele Branca como a Neve (Parte 3)

Benção do Oficial do Céu






Aquelas figuras estavam vestidas de branco em trajes de prisioneiro, todos decapitados. Aparentemente, eles eram um grupo de criminosos recentemente executados, cada um segurando a própria cabeça em suas mãos. Os fantasmas cambaleavam lentamente em direção ao carro de boi enquanto conversavam, pendurados por seus braços esqueléticos.

Xie Lian instruiu aos outros dois na carroça em uma voz baixa, “No momento em que eles se aproximarem, não façam barulho.”

San Lang inclinou a cabeça. “Gege[1], eu não acredito, você tem superpoderes!”.

Ele parecia genuinamente interessado e o príncipe respondeu, “Não são exatamente superpoderes, eu apenas sei alguns truques. Eles não podem nos ver agora, mas é difícil afirmar se chegarem perto demais.”

Os olhos daquele velho carreiro já estavam arregalados de medo depois de ver a faixa de seda flutuando sozinha. Agora, com aquelas criaturas ambulantes decapitadas, seus globos oculares pareciam prestes a saltar em terror. Ele sacudiu sua cabeça repetidamente.

“Não, não, não, não, eu não acho que consiga segurar a minha voz! Daozhang[2], o que eu faço?!”.

“Hm… há outro jeito também. Peço perdão por isso.”

Então, ele rapidamente virou sua mão e acertou um local nas costas do idoso senhor, fazendo-o instantaneamente cair desacordado. Xie Lian o segurou com facilidade, deitando-o de costas na traseira do carro de boi enquanto o próprio príncipe assumia a posição do carreiro. Subitamente, sentiu uma movimentação estranha atrás de si e, quando virou para olhar, viu que aquele rapaz o havia seguido e agora acomodava-se ao seu lado no assento.

Xie Lian perguntou, “Você está bem?”.

San Lang levantou o queixo, “Claro que não. Estou com medo.”

Apesar de sua voz não carregar um único sinal de pavor, Xie Lian ainda o confortou, “Não tema. Você está comigo, não deixarei nada lhe machucar.”

O jovem sorriu sem dizer uma palavra. O deus de repente percebeu que o rapaz o encarava. Um momento depois, finalmente lhe ocorreu que ele na verdade mirava o grilhão amaldiçoado em volta de seu pescoço.

Aquele grilhão amaldiçoado era como um colar negro desenhado em sua pele, completamente impossível de se livrar. Era fácil alguém fazer suposições erradas sobre si com aquilo. Xie Lian puxou seu colarinho levemente, mesmo que não pudesse esconder nada de fato. 

Os céus haviam escurecido e a expressão daquele jovem não podia mais ser vista. O príncipe pegou as rédeas para gentilmente comandar o boi. Aquele grupo de fantasmas em trajes de criminosos veio em sua direção querendo passar, mas continuavam sentindo algo bloqueando o meio da estrada, então começaram a xingar de várias formas.

“O que diabos está acontecendo? Por que não podemos passar?!”

“Ei, que diabos! Aqui é mal assombrado?”.

“Mas que inferno, somos nós que estamos aqui para assombrar, esqueceu?”.

Xie Lian finalmente conseguiu acalmar o boi e a carroça silenciosamente passou por aquele bando de fantasmas sem cabeça. Ouvindo-os discutir, o deus só conseguia pensar que eles eram um pouco hilários, cheios de reclamações triviais.

“Hm, eu acho que você cometeu um erro. Por que parece que quem está segurando sua cabeça sou eu?”.

“Foi você quem pegou a cabeça errada!”.

“Pessoal, devolvam elas rápido, então…”

“Por que o corte no seu pescoço parece tão horrível?”.

“Ah, o carrasco era um novato. Ele precisou de cinco ou seis tentativas antes de conseguir cortar minha cabeça fora. Até pensei que ele fez de propósito!”.

“Sua família não deve ter dado uma gorjeta boa o suficiente. Da próxima vez, não se esqueça de pagar o brutamontes e ele lhe fará um corte certeiro.”

“NÃO HÁ PRÓXIMA VEZ!”.

O décimo quinto dia do sétimo mês era o Festival Zhongyuan — o maior evento do reino fantasma. Naquele dia, os portões para o submundo se abriam e todo tipo de espíritos, fantasmas, monstros e demônios saiam por aí para se divertir. Mortais deveriam evitá-los a todo custo, especialmente em noites como esta, era melhor ficar em casa com todas as portas e janelas veementemente fechadas. Mas Xie Lian sempre teve uma sorte podre. Ele poderia apenas estar bebendo água e o líquido ficaria preso em seus dentes, e poderia estar usando qualquer repelente sagrado e ainda assim encontraria fantasmas por aí, como naquele momento. Chamas fantasmagóricas faiscavam ao redor deles, a maioria brincava de pega-pega, mas havia algumas também que inexpressivamente murmuravam uma para as outras, tentando pegar as oferendas de papel moeda[3] queimados para eles no pós vida pelos humanos.

Uma cena como esta era certamente o epítome da palavra “pandemônio”. Xie Lian passou entre eles, pensando em como de agora em diante não deveria esquecer de olhar o calendário antes de sair. De repente, um guincho parecido com o de uma galinha sendo degolada foi ouvido.

“OH, NÃO! OH, NÃO! FANTASMAS ESTÃO SENDO ASSASSINADOS!”

Aquele grito fez todos os espíritos entrarem em desespero.

“ONDE, ONDE? ONDE ESTÃO ASSASSINANDO FANTASMAS??”.

O que havia guinchado respondeu, “Estou morrendo de medo! Eu encontrei tantas chamas fantasmagóricas esmagadas no caminho, todas foram brutalmente destruídas, quanta hostilidade!”.

“Todas esmagadas? Então, não há como recuperá-las mais! Isso é realmente horrível!”.

“Quem fez isso? Poderia ser… que monges e cultivadores se infiltraram entre nós?!”.

Aquele bando de fantasmas sem cabeça começou a gritar.

“Ah! Agora que vocês mencionaram, não fomos bloqueados mais cedo na estrada sem jeito de passar? Será que aquilo foi…”

“Onde? Onde?”.

“Bem ali!”.

Xie Lian exclamou um “ah, não!” mentalmente.

No instante seguinte, um grande grupo de monstros, demônios e fantasmas cercaram o carro de boi, cada uma de suas faces mais selvagem que a outra, dizendo maliciosamente, “Sinto o cheiro fumegante de energia yang…”

Eles não podiam mais se esconder!

Já era irracional que um humano desse de cara com uma multidão de fantasmas em pleno Festival Zhongyuan, até parece que Xie Lian realmente gostaria de iniciar uma luta com uma gangue tão grande de criaturas.

Ele incitou o animal e gritou, “VAMOS!”.

Aquele boi estava aterrorizado e já pisoteava o chão ansiosamente com seus cascos trêmulos enquanto esperava. Quando ouviu o brado do deus, não precisou ser apressado outra vez antes de sair correndo loucamente puxando a carroça.

Xie Lian não esqueceu de agarrar o jovem sentado atrás de si com afinco. “SEGURE FIRME!”.

Ele invocou Ruoye de volta e convenientemente a fez abrir o caminho à sua frente. O carro de boi foi subitamente revelado em meio do cerco de espíritos e chamas fantasmagóricas e voou para longe. Aqueles fantasmas de faces esverdeadas, dentes pontudos e com membros faltando guincharam com raiva atrás deles.

“HÁ REALMENTE UM CULTIVADOR!!! MALDITO DAOZHANG, ESTÁ CANSADO DE VIVER?!”.

“Um homem humano ousou invadir nossa reunião de Zhongyuan, não podem nos culpar por nada!”.

“PEGUEM-NOS!”.

Xie Lian segurava as rédeas com uma mão enquanto sua outra ocupava-se em retirar de suas vestes um grande punhado de talismãs. Ele os jogou no chão ao seu redor.

“ATRASE-OS!”.

Aqueles eram amuletos de impedimento, ferramentas excelentes para fugas rápidas. Uma série de barulhos estrondosos pôde ser ouvida, com cada ribombar um obstáculo era criado para aquela trupe de fantasmas, fazendo os três ganharem um pouco de tempo, ainda que mínimo. Mesmo usando tantos talismãs, não demoraria ao menos um incenso antes que os alcançassem de novo. Xie Lian conduzia a carroça montanha abaixo loucamente como se seu traseiro estivesse pegando fogo, subitamente exclamando. 

“PARE!”.

Aparentemente, aquele velho boi os havia trazido até uma bifurcação na estrada. Xie Lian observou os dois caminhos à frente, ambas estradas montanhosas completamente escuras, e imediatamente puxou as rédeas para trás.

Agora ele precisava ser muito cuidadoso ali!

Nas noites de Festival Zhongyuan, às vezes quando as pessoas andavam por aí podiam encontrar estradas que não existiam antes. Tais caminhos nunca deveriam ser tomados, porque se fossem trilhados erroneamente, o transeunte entraria no reino fantasma e nunca mais conseguiria retornar.

Xie Lian havia acabado de chegar naquela área e não sabia qual era o caminho verdadeiro a seguir. Então, ele se lembrou da grande sacola de bugigangas que havia coletado. Dentre os artefatos que havia comprado mais cedo havia uma caixinha da sorte[4]. Dessa forma, por que não tirar a sorte e decidir? Assim, ele procurou pela caixinha e a sacudiu em suas mãos, emitindo um som barulhento enquanto murmurava.

“Que a benção dos oficiais do céu abra todos os caminhos! Todas as estradas levam aos céus, que todas sejam trilhadas! A primeira vareta é à esquerda, a segunda é à direita! Seguiremos pelo caminho com a melhor fortuna!”.

Assim que as palavras deixaram sua boca, duas varetas caíram da caixinha, mas quando as pegou o príncipe caiu em silêncio.

A pior das más sortes.

Em ambos os palitos se liam a pior das más sortes, ambas as estradas eram perigosas, então aquilo não significava que iriam morrer não importava por onde fossem?

Xie Lian sentiu-se um pouco exasperado e furiosamente chacoalhou o objeto mais uma vez com as duas mãos. “Cara caixinha da sorte, este é o nosso primeiro encontro, por que precisa ser tão cruel? Vamos tentar de novo. Por favor, não me humilhe assim novamente.”

CLAC, CLAC. Duas varetas caíram novamente e desta vez, quando as pegou para analisar, elas ainda eram a pior das más sortes!

“Posso tentar?” San Lang falou de repente.

Não poderia ser pior que ele, de qualquer modo, então Xie Lian lhe entregou a caixinha. San Lang a pegou com uma única mão e a chacoalhou despreocupadamente. Dois palitos caíram mais uma vez e ele os entregou ao deus sem nem ao menos mirá-los. Xie Lian deu uma olhada nos resultados e ambos eram, surpreendentemente, a melhor das sortes! O príncipe não pôde evitar ficar boquiaberto. Desde que havia atingido estado tão extremo de miséria, parecia que ele por diversas vezes acabava afetando a fortuna daqueles ao seu redor com sua sorte horrorosa. Ninguém sabia se aquilo era verdade, realmente, mas era uma reclamação que ouvia com frequência. No entanto, aquele jovem não havia sido afetado nem um pouco e uma sacudida casual sua o fez tirar duas das melhores fortunas!

Já que ambos os palitos mostravam a melhor das sortes, Xie Lian escolheu um caminho aleatório e conduziu a carroça enquanto elogiava sinceramente o rapaz.

“Meu amigo, sua sorte é incrivelmente boa.”

San Lang despretensiosamente jogou a caixinha da sorte na parte de trás e sorriu. “Sério? Eu acho a minha sorte muito boa também. Sempre foi, na verdade.”

Escutando-o dizer “sempre foi, na verdade” Xie Lian só conseguia pensar que a diferença entre as pessoas realmente era enorme como os céus e a terra. Depois de correrem por um tempo, uivos e lamentações de repente podiam ser ouvidos vindo de todos os lados.

“PEGUEM-NO! ELE ESTÁ AQUI!”.

“PESSOAL, POR AQUI! AQUELE MALDITO CULTIVADOR ESTÁ AQUI!!!”.

Os fantasmas começaram a surgir ao seu redor um por um.

Xie Lian lamuriou-se, “Ah, eu não acredito que ainda assim escolhemos o caminho errado.”

O efeito dos amuletos de impedimento também já havia passado, afinal eles estavam cercados!

Deveria haver ao menos uma centena de indivíduos nesta gangue de monstros e fantasmas, rodeando-os fileira por fileira, e os números apenas cresciam. Xie Lian realmente não tinha ideia que tantas criaturas não humanas haviam se reunido aqui, mas ele não tinha tempo para pensar sobre o motivo.

O príncipe calorosamente disse, “Não foi minha intenção perturbar vocês, eu rezo para que todos nos mostrem um pouco de compaixão.”

Um dos fantasmas sem cabeça cuspiu, “Ha! Cultivador fedorento. Por que não nos mostrou um pouco de compaixão primeiro? Aquele que esmagou e dispersou um bando de chamas fantasmagóricas ali atrás foi você, não foi?!”.

Xie Lian respondeu inocentemente, “Não fomos nós. Verdade seja dita, eu sou apenas um mero catador de sucata.”

“NÃO TENTE NOS ENGANAR! Que tipo de catador de sucata se parece com você? Você é claramente um cultivador! Além de você, quem mais aqui seria um cultivador capaz de fazer algo tão cruel??”.

“Não precisa ser um cultivador para esmagar e dispersar chamas fantasmagóricas,” o deus tentou argumentar.

“Então, o que mais seria? Um fantasma?”.

Xie Lian silenciosamente colocou suas mãos dentro de suas mangas. “Isto não é uma possibilidade impossível.”

“HAHAHAHAHAHA! Maldito cultivador! Você… você… você…”

O bando de fantasmas que ria e uivava histericamente em direção aos céus subitamente travou em suas ações.

O príncipe indagou, “O que tem eu?”.

Ele havia feito apenas uma simples questão, mas aparentemente os fantasmas não haviam somente se detido em seus passos. Todos olhavam para Xie Lian como se estivessem vendo algo excessivamente aterrador. Suas bocas se encontravam ou totalmente abertas ou firmemente fechadas, e algumas cabeças que estavam sendo seguradas pelos corpos decapitados até mesmo rolaram para o chão.

O deus estava confuso, “Pessoal? Vocês estão…”

Contudo, inesperadamente, antes que ele pudesse acabar de formular a pergunta, todo o grupo de fantasmas deixou aquela local correndo como se suas vidas dependessem daquilo, tal como o vento soprando as nuvens remanescentes no céu.

Xie Lian estava totalmente estático. “Mas o quê??”.

Ele não havia nem ao menos retirado aquele bolo de talismãs que esteve segurando em suas mangas e mesmo assim… Teria sido descoberto? Aquelas criaturas eram tão astutas assim? E aqueles nem eram talismãs especialmente fortes também. O deus se sentia incrédulo. Havia sido realmente ele que os espíritos viram?

Ou algo atrás de si?

Pensando naquilo, ele virou a cabeça e olhou para trás.

Em suas costas havia apenas aquele velho carreiro desmaiado e o despreocupado jovem vestido de vermelho com uma bochecha ainda apoiada sobre a mão.

Vendo que estava sendo observado, San Lang sorriu e abaixou seu braço. “Senhor cultivador, você é incrível! Todos aqueles fantasmas ficaram assustados com o senhor!”.

“...” Xie Lian sorriu de volta. “Sério? Eu não sabia que era tão incrível assim.”

Então, ele puxou as rédeas algumas vezes e as rodas do carro de boi lentamente começaram a se mover novamente. A estrada em frente não tinha muitos obstáculos e não demorou ao menos uma hora para que a carroça deixasse a floresta escura e saísse em uma estrada montanhosa aberta. Abaixo dos declives dos morros, a luz calorosa das lanternas iluminava o Vilarejo Puqi.

Aquele realmente era o caminho da “melhor das sortes”, tendo eles tomado um susto com aquelas criaturas, mas escapado ilesos.

Uma brisa noturna passou por eles e Xie Lian virou a cabeça mais uma vez. San Lang parecia estar de muito bom humor e havia se deitado, observando a lua com suas mãos apoiadas atrás da cabeça. Abaixo do leve brilho lunar, a tez daquele rapaz parecia surreal.

Cantarolando por um momento, Xie Lian sorriu. “Meu amigo.”

“O que é?” San Lang respondeu.

“Alguma vez já leram a sua sorte?” O deus perguntou.

“Não?” O outro disse, virando-se para olhar o mais velho.

“Gostaria que eu tentasse?”.

San Lang olhou para ele e sorriu. “Você gostaria de tentar?”.

“Um pouco,” Xie Lian falou honestamente.

San Lang assentiu brevemente. “Claro.”

Ele se sentou, seu corpo inclinando-se levemente na direção de Xie Lian. “Como você quer ler a minha sorte?”.

“Que tal eu ler suas mãos?” O príncipe sugeriu.

Ouvindo aquilo, os cantos dos lábios de San Lang se curvaram. Era difícil dizer o que ele estava pensando, porém o jovem apenas respondeu, “Tudo bem.”

Então, ele estendeu sua mão esquerda para Xie Lian.

Aquela mão era longa e bem torneada, elegante e longilínea, de fato muito bonita. Não era o tipo de beleza vulnerável, não, mas uma que escondia a força por baixo de seus músculos. Era uma mão que ninguém gostaria de ver ao redor de seu pescoço. Xie Lian teve a delicadeza de não a pegar devido a leve mudança de expressão do outro da última vez que o havia tocado, então simplesmente a olhou de perto, estudando-a com afinco.

A lua acima deles era brilhante, mas não muito, e ainda assim no meio da noite, não parecia tão escuro ao redor. Xie Lian analisou cada detalhe da mão em sua frente enquanto o carro de boi languidamente subia os morros. As rodas e a carroça de madeira rangiam enquanto viajavam.

“E então?” San Lang perguntou.

O príncipe tomou seu tempo, depois falou lentamente, “Você tem uma mão muito boa.”

“Ah, é? Como assim?” O outro instigou.

Xie Lian levantou a cabeça e disse com ternura, “Você tem uma personalidade forte, é teimoso, mas sempre que enfrenta obstáculos continua verdadeiro consigo mesmo e é capaz de transformar as coisas ruins em boas. Você tem um poço ilimitado de boa sorte, seu futuro é brilhante e cheio de sucessos.”

Tudo aquilo era a mais pura baboseira, inventada ali naquela mesma hora. Xie Lian nunca havia aprendido quiromancia. Muito tempo atrás, quando ainda estava banido, ele frequentemente se arrependia de não ter aprendido quiromancia ou fisiognomonia no Pavilhão Real Sagrado. Se fosse competente naquilo, então talvez arrecadar algumas moedas não teria sido tão difícil e ele não teria que se apresentar na rua ou quebrar pedregulhos em seu peito. O que realmente queria ver não era a sorte daquele rapaz, e sim se suas mãos tinham linhas e digitais. 

Fantasmas e monstros comuns podiam fabricar corpos falsos e fingir serem humanos, mas suas habilidades eram parcas e frequentemente deixavam passar diversos detalhes, tal como os dígitos e as linhas das mãos. No entanto, o corpo daquele jovem parecia normal em um plano geral, impassível e com claras digitais em seus dedos. Se ele fosse um fantasma disfarçado, então deveria ser de um calibre maior que um Selvagem para criar um clone tão perfeito. Mas por que um Rei Fantasma de tão alto status estaria viajando com Xie Lian em um velho carro de boi para visitar o Vilarejo Puqi? Assim como os oficiais celestes estavam sempre trabalhando como operários, Reis Fantasmas deviam ter suas mãos cheias também!

Xie Lian fingia ser confiante em suas habilidades de leitor da sorte e suava ao soltar mentira atrás de mentira entredentes, tentando manter uma expressão relaxada até que não conseguisse pensar em mais nada. San Lang o assistiu falar e falar o tempo todo sem ao menos piscar, ouvindo-o dizer todas aquelas coisas com um sorriso intrigante, rindo levemente ao final.

“Mais alguma coisa? Hm?” O rapaz questionou.

Não era possível, ele queria que Xie Lian inventasse mais ainda? “Há alguma coisa que você queira que eu veja?”.

“Os leitores de sorte geralmente não falam sobre amor e casamento?” San Lang comentou.

Xie Lian limpou sua garganta e respondeu solenemente, “Para ser sincero, eu não sou tão bom assim lendo a sorte das pessoas, então não sei prever relacionamentos. Mas não acho que seja algo com que você precise se preocupar.”

San Lang arqueou as sobrancelhas. “Por que diz isso?”.

O príncipe sorriu. “Devem haver muitas garotas por aí com uma queda por você.”

“E por que você acha que tantas garotas gostam de mim?” O jovem pressionou.

Xie Lian estava prestes a respondê-lo quando percebeu que aquele era o tipo de armadilha que alguém fazia para manipular outra pessoa em troca de elogios. Desamparado e divertido, o deus não sabia o que dizer e massageou sua testa.

“San Lang…”

Aquela havia sido a primeira vez que Xie Lian o chamara pelo nome e o rapaz riu deleitosamente, deixando-o escapar da pergunta. O carro de boi finalmente entrou no vilarejo e o príncipe virou e se apressou para descer da carroça, ainda com uma mão nas têmporas. San Lang seguiu suas ações e saiu dali logo em seguida. Xie Lian finalmente percebeu com uma pequena surpresa que o jovem era na verdade ao menos uma cabeça maior que ele. Não era tão óbvio quando estava deitado preguiçosamente no feno, mas agora altivo ao seu lado, os dois não conseguiam se olhar nos olhos sem inclinar suas cabeças.

San Lang parou ao lado do veículo e se espreguiçou. Xie Lian indagou, “San Lang, para onde você vai agora?”.

“Eu não sei. Talvez dormir nas ruas. Ou talvez uma caverna possa quebrar o galho,” o rapaz suspirou.

“Isso não é bom…” O príncipe falou preocupado.

San Lang deu de ombros. “Não posso fazer nada, eu não tenho para onde ir mesmo.” Ele sorriu. “Obrigado por ler a minha sorte. Vou acreditar em suas boas palavras. Nos vemos por aí.”

Xie Lian sentia-se mal por sua leitura da sorte e vendo que aquele jovem havia realmente virado e estava indo embora, ele rapidamente o chamou de volta. “Espere! Por que você não vem comigo para o santuário, se não se importar?”.

O rapaz pausou seus passos e virou metade de seu corpo para trás. “Tudo bem se eu for?”.

O deus explicou, “O lugar não era meu originalmente mesmo e eu ouvi que várias pessoas já se abrigaram lá. Provavelmente é bem pior do que você está acostumado e temo que não seja muito confortável.”

Se aquele garoto realmente era um jovem mestre fugitivo, Xie Lian não podia possivelmente deixá-lo andar pelas ruas a esmo. Ele suspeitava fortemente que San Lang havia de fato comido apenas aquele meio bolinho que dividiram e, jovem ou não, era capaz de colapsar a qualquer momento se aquele fosse o caso. Ouvindo o príncipe falar aquilo, San Lang virou seu corpo totalmente e não disse mais nada, porém caminhou em direção ao outro e inclinou-se para perto dele. Xie Lian não sabia o que o rapaz estava pensando, somente que a distância entre eles havia sido encurtada muito rapidamente e que de repente não sabia o que fazer.

Assim, aquele jovem se endireitou novamente e levantou a grande sacola de quinquilharias em sua mão, dizendo, “Então, vamos.”





----------


[1] “Gege” é um termo de tratamento familiar entre uma pessoa mais nova e um homem mais velho, relacionados por sangue ou não.

[2] [] “Daozhang” significa “mestre taoísta” e é geralmente usado para se referir a cultivadores.

[3] É tradição comum queimar papel moeda e outras imitações de papel de objetos do dia a dia para os mortos, na esperança de que eles as recebam no pós vida.

[4] Uma caixinha da sorte é um recipiente de madeira cheio de finos palitos de bambu com vários níveis de sorte escritos em cada um deles. O objetivo é chacoalhar a caixinha com um desejo em mente e a primeira vareta que cair indicará o resultado do pedido.



Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil



0 Comentários em "Capítulo 15 | Novel 'Benção do Oficial do Céu'"