Capítulo 16 | Novel 'Benção do Oficial do Céu'

setembro 18, 2021 0

 


CAPÍTULO 16 - Roupas Vermelhas como Bordo; Pele Branca como a Neve (Parte 4)

Benção do Oficial do Céu



 


Xie Lian ficou atordoado por um momento. Ele assistiu o jovem alto andar à sua frente com a enorme sacola de sucata como se fosse a coisa mais natural do mundo, fazendo-o murmurar para si mesmo “perdoe-me pelos meus pecados”. San Lang deu alguns passos e caminhou na direção apontada. O príncipe estava prestes a segui-lo, mas lembrou-se no último segundo que o velho carreiro ainda estava desacordado na traseira do carro de boi. Assim, ele voltou e acordou o senhor, aconselhando-o a manter em segredo os acontecimentos daquela noite. Depois de ter visto seus poderes com seus próprios olhos, o homem não ousou refutá-lo e rapidamente conduziu o velho Huang para casa.

Havia apenas uma esteira de palha enrolada que havia sido deixada na carroça. Xie Lian a colocou em suas costas e virou-se, vendo que San Lang já havia começado a subir o morro em direção ao Santuário Puqi com aquela sacola de velharias.

Aproximando-se da cabana trêmula e despedaçada, o rapaz inclinou a cabeça para baixo e soltou uma risada suave, como se tivesse visto algo engraçado. Xie Lian apareceu ao seu lado e percebeu que ele mirava aquela placa pedindo por doações, e limpou a garganta. 

“Como pode ver, isso é tudo. Por isso eu disse que talvez não fosse muito confortável para você aqui.”

“Não é tão ruim,” San Lang afirmou.

No passado, sempre fora Xie Lian que dizia aos outros “está tudo bem, não é tão ruim assim”. Ouvir outra pessoa falando aquilo em sua frente pela primeira vez o fez sentir um pouco estranho. A porta do Santuário Puqi havia apodrecido há tempos, então Xie Lian a tinha arrancado e colocado algumas cortinas em seu lugar.

Ele levantou os panos e disse, “Venha, entre.”

San Lang caminhou para dentro do casebre consigo.

Não havia muito dentro do pequeno santuário, apenas uma longa mesa servindo como altar, dois pequenos bancos, uma pequena almofada e uma caixa de doações. Xie Lian tomou a sacola das mãos de San Lang e começou a retirar lá de dentro a caixinha da sorte, um incensário, alguns papéis e outros diversos objetos de decoração, colocando-os sobre o altar. Então, ele acendeu uma vela vermelha um pouco gasta que alguém havia lhe dado enquanto coletava sucata e iluminou o local brevemente.

O rapaz pegou a caixinha da sorte e deu uma sacudidela despreocupada antes de colocá-la de volta. “Então… você tem uma cama?”.

O príncipe silenciosamente removeu a esteira de palha em suas costas e a desenrolou no chão para lhe mostrar.

San Lang arqueou as sobrancelhas e perguntou, “Só tem uma?”.

É claro, Xie Lian não achou que precisaria de outra já que havia conhecido o jovem apenas quando já voltava de sua jornada. Assim, ele disse, “Se não se importar, podemos nos espremer e dividi-la esta noite.”

“Não há problemas para mim,” San Lang falou.

O deus, então, pegou sua vassoura e começou a retirar o pó do chão enquanto o rapaz observava um pouco mais o local. “Gege, não há algo faltando neste santuário?”.

Xie Lian havia acabado de varrer e estava prestes a se acomodar na esteira quando ouviu aquilo. Ele respondeu enquanto arrumava sua cama para aquela noite, “Além de seguidores, não acho que falta alguma coisa.”

San Lang se agachou também, apoiando seu queixo sobre uma mão. “E uma estátua divina do deus adorado?”.

Suas palavras finalmente acordaram Xie Lian. Como ele havia esquecido da coisa mais importante em um santuário — a estátua divina?

Um templo sem um ídolo não era um templo. Apesar de tecnicamente o próprio deus adorado estar ali presente, ele não poderia possivelmente ficar sentado no altar o dia inteiro, todos os dias. Xie Lian contemplou por um momento e rapidamente pensou em uma solução.

“Eu comprei papel e tinte hoje mais cedo. Posso pintar um retrato amanhã.”

Pintar um retrato de si mesmo para pendurar em um santuário que ele construiu para si mesmo para rezar para si mesmo. Se a corte celestial acabasse ouvindo sobre isso, eles provavelmente ririam dele por mais dez anos. Mas os custos de encomendar uma escultura eram um tanto altos e aquilo levaria tempo também. Então, Xie Lian preferia guardar seu dinheiro e se tornar uma piada novamente.

Inesperadamente, San Lang disse, “Um retrato? Eu sei como pintar também. Quer que eu te ajude?”.

Pego de surpresa, o deus sorriu. “Obrigado, mas temo que você não saiba como é o Príncipe de Xianle, não é?”.

Afinal, a maioria de suas pinturas havia sido queimada ou destruída oitocentos anos atrás. Não importava quantas restassem naqueles dias, não havia muitas pessoas que já as haviam visto.

No entanto, San Lang respondeu, “É claro que sei. Não estávamos falando sobre ele mais cedo na carroça?”.

Xie Lian lembrou-se de sua conversa. Aquele era, de fato, o caso. Naquela hora, ele dissera “você provavelmente nunca ouviu falar sobre ele”, mas San Lang não havia respondido. Ouvindo-o dizer aquilo, o príncipe ficou surpreso. Ele terminou de arrumar a cama e sentou-se altivo. 

“San Lang, não me diga que você realmente o conhece?”.

O rapaz recostou-se sobre a esteira e respondeu, “Conheço.”

Xie Lian achava que, quando San Lang falava, suas expressões e tom de voz eram bastante fascinantes. Ele estava sempre sorrindo e dando risada, mas ninguém conseguia dizer se seus sorrisos eram genuínos ou se estava zombando da outra pessoa por ser um idiota. Tendo conversado com ele por todo aquele tempo, o mais velho encontrava-se deveras interessado na estima que San Lang parecia ter consigo. 

O deus se ajeitou para sentar ao seu lado e perguntou, “Então, o que você acha desse Príncipe de Xianle?”.

Os dois homens olharam um para o outro sob a luz fraca da vela. A chama na ponta se agitou brevemente. O jovem estava com suas costas viradas para o altar e era difícil ver sua expressão exata com seus olhos imersos nas sombras. 

Depois de um momento, ele respondeu, “Eu acho que o Imperador Celestial não deve gostar muito dele.”

Xie Lian com certeza não esperava aquela resposta e se deteve. “Por que acha isso?”.

“Por que ele teria banido o príncipe duas vezes se não fosse o caso?”, San Lang questionou de volta.

O outro deu um leve sorriso e pensou, “De fato, a mentalidade de uma criança.”

Ele abaixou a cabeça e começou a desatar seu cinto. “Eu não acho que seja uma questão de gostar ou desgostar. Há muitas coisas neste mundo que não podem ser julgadas apenas por gostar e não gostar.”

“Hm.”

Xie Lian se virou, removendo suas botas brancas, e continuou, “Além disso, as pessoas precisam ser punidas quando cometem erros. O Imperador Celestial estava apenas cumprindo seu papel.”

“Talvez,” San Lang respondeu evasivamente.

O príncipe acabou de tirar seus robes externos, dobrou-os e estava prestes a colocá-los sobre a mesa do altar. Querendo continuar o assunto, ele voltou a virar, apenas para ver os olhos do rapaz observando seus tornozelos.

Era difícil descrever aquele olhar, gélido, porém abrasador; ardente, mas com um toque de frieza. Xie Lian mirou seus próprios pés e finalmente compreendeu. Em seu tornozelo direito havia outro escuro grilhão amaldiçoado.

O primeiro grilhão ficava ao redor de seu pescoço, o segundo, em seu tornozelo. Ambas as maldições estavam em lugares difíceis de se esconder. No passado, se alguém perguntasse sobre elas a Xie Lian, ele mentiria e diria que eram a fins de treinamento, mas aquela resposta provavelmente não enganaria a San Lang.

Felizmente, o rapaz não disse nada e retirou seus olhos dali depois de um tempo. Xie Lian deitou na esteira e o jovem obedientemente se acomodou a seu lado sem retirar uma única peça de roupa. O príncipe simplesmente achou que ele não deveria estar acostumado a deitar no chão daquele jeito e pensou que, no final das contas, talvez realmente devesse arranjar uma cama.

“Vamos descansar.”

Xie Lian suavemente soprou a vela e tudo ficou escuro mais uma vez.

Na manhã seguinte, quando o deus abriu seus olhos, San Lang já não estava mais ali. Ele levantou a cabeça e parou, aturdido. No topo do altar havia uma pintura pendurada.

Era um retrato de um homem com uma máscara dourada, usando um traje glamuroso e extravagante. Em uma de suas mãos havia uma espada e, na outra, uma flor. Era uma bela e vívida pintura do Príncipe de Xianle que Adorava aos Deuses.

Já fazia anos que Xie Lian não via um retrato de si mesmo como aquele e acabou por olhar fixamente a obra por um bom tempo antes de se levantar. Ele se vestiu e puxou as cortinas. San Lang estava lá fora, escondido nas sombras do santuário, brincando com a vassoura em sua mão enquanto observava o céu com uma expressão entediada.

Parecia que aquele jovem realmente detestava o sol. O jeito que ele observava o céu era como se quisesse arrancar o sol dali e quebrá-lo em pedaços. Todas as folhas caídas ao redor da cabana haviam sido varridas e juntadas em um montinho perto da entrada.

Xie Lian saiu pela porta e disse, “Você dormiu bem esta noite?”.

San Lang permaneceu escorado na parede, mas virou sua cabeça para responder, “Não foi ruim.”

O príncipe parou ao seu lado, pegou a vassoura de suas mãos e perguntou, “San Lang, foi você que pintou aquele retrato no santuário?”.

O jovem respondeu, “Uh-huh.”

“É muito bem feito,” Xie Lian o elogiou.

Os lábios de San Lang se levantaram, mas ele não disse nada. Talvez porque tivesse dormido em uma posição tão ruim na noite anterior, seu rabo de cavalo naquela manhã parecia ainda mais bagunçado, solto e mal feito. Na verdade, até lhe caía bem, era casual, mas não desleixado, bastante lúdico.

Xie Lian apontou para seu próprio cabelo e perguntou, “Quer que eu lhe ajude com isso?”.

San Lang assentiu e voltou para o santuário com o príncipe. Quando se sentou, Xie Lian soltou seus longos cabelos negros e começou a examiná-los.

Mesmo que as digitais e as linhas de suas mãos fossem perfeitamente detalhadas, fantasmas sempre tinham uma falha na criação de seus clones. Os cabelos de um ser humano vivo eram incontáveis e cada fio era intrincado e distinto. As formas falsas criadas pelos fantasmas geralmente tinham cabelos que eram ou uma névoa negra ou uma massa colada como longas tiras de tecido. Às vezes… elas apenas eram carecas.

Xie Lian havia checado seus dígitos e suas mãos na noite anterior, e inicialmente baixou sua guarda após não ver nada de errado. Porém, ver aquele retrato naquela manhã levantou suas suspeitas novamente.

Como um homem comum saberia como pintar aquela cena?

Entretanto, enquanto gentilmente penteava os cabelos de San Lang com seus dedos, Xie Lian não conseguiu encontrar nada fora do comum. Depois de um tempo, o rapaz soltou uma risada como se o toque lhe fizesse cócegas. Ele virou sua cabeça levemente e olhou para o deus pelos cantos dos olhos.

“Gege, você vai amarrar meu cabelo? Ou está pensando em outra coisa?”.

Com suas mechas soltas, San Lang ainda era lindo, mas parecia que um ar de malícia havia sido adicionado ao seu redor. Sua provocação trouxe Xie Lian de volta de seus devaneios.

Ele sorriu e disse, “Tudo bem, tudo bem”, rapidamente terminando de arrumar seu cabelo. Porém, depois de o fazer, San Lang olhou para seu reflexo em um balde d’água no canto e virou de volta para Xie Lian com as sobrancelhas levantadas. O príncipe deu uma olhada em seu trabalho e tossiu. 

O rabo de cavalo estava assimétrico antes. Depois que Xie Lian o amarrou novamente ainda estava torto.

Apesar de San Lang não falar nada e apenas continuar olhando para si, o deus sentia que fazia séculos que não ficava envergonhado dessa forma. Ele abaixou suas mãos e estava prestes a sugerir que tentasse novamente quando subitamente ouviram uma comoção lá fora. O som de passos se aproximou e vários gritos inundaram o local.

“GRANDE IMORTAL!!!”.

Aturdido, Xie Lian correu para a porta justo a tempo de ver seu santuário cercado por um grande grupo de aldeões, todos com rostos vermelhos e excitados. O chefe do vilarejo tomou a dianteira e segurou as mãos do príncipe.

“UM DEUS! UM DEUS APARECEU EM NOSSO PEQUENO VILAREJO! SOMOS PROFUNDAMENTE GRATOS!!!”.

Xie Lian, “???”.

O resto dos aldeões seguiu o chefe e rodeou Xie Lian. 

“Bem-vindo ao Vilarejo Puqi, Grande Imortal!”.

“Meu lorde! Pode me abençoar com uma esposa?”.

“Meu lorde! Pode abençoar minha esposa com uma criança?”.

“Meu lorde! Trouxemos castanhas d’água frescas para o senhor! O senhor gostaria de algumas? Depois de comê-las, pode convenientemente nos abençoar com uma boa colheita este ano?”.

O grupo era tão entusiasmado e insistente que Xie Lian teve de dar alguns passos para trás, suando frio. Aparentemente, o velho carreiro da noite anterior tinha uma boca bem grande. O deus o havia pedido para não contar sobre o incidente, contudo, no instante em que o sol raiou, as notícias já haviam se espalhado pelo vilarejo inteiro!

Os aldeões não tinham ideia de que tipo de deus era adorado no Santuário Puqi, mesmo assim eles ainda se aglomeravam ali querendo acender incensos em oração. Não importava quem fosse, um deus era um deus e orações não faziam mal algum. Xie Lian inicialmente havia esperado ervas daninhas e corvos em seu santuário, com apenas algumas pessoas vindo oferecer suas preces, então não pensou em preparar muitos incensos. Quem diria que com tanto tumulto, todas as varetas de incenso se esgotariam em um átimo! O incensário estava cheio até a boca e sua fumaça densa preenchia a cabana. Xie Lian não havia sentido o cheiro daquilo em um bom tempo e acabou tossindo.

Enquanto abanava a nuvem perfumada, ele disse, “Pessoal, este santuário não os abençoa com fortunas, por favor, parem de pedir por dinheiro! O resultado será imprevisível…”

“Perdoem-me, este santuário não os abençoa com um bom casamento também…”

“Não, não, não, não os abençoa com gravidez também…”

San Lang parou de se importar com seu cabelo desajeitado e sentou perto da caixa de doações, uma mão apoiando seu queixo enquanto a outra pegava castanhas d’água para comer. Várias garotas do vilarejo puseram seus olhos nele e coraram.

Elas disseram a Xie Lian, “Hm, o senhor concede…”

O príncipe não tinha certeza do que elas iam perguntar, mas sentiu instintivamente que deveriam ser paradas de imediato, exclamando, “Não!”.

Afinal, quando a multidão foi dispersada, o altar estava preenchido com frutas e vegetais, e até mesmo arroz e macarrão. Não importava o que havia acontecido, ainda eram oferendas abundantes. Xie Lian varreu o chão e tirou o lixo enquanto San Lang o seguia para fora.

“Parece que o santuário está indo bem.”

O deus balançou a cabeça e continuou a tirar o pó. “Isso foi um acontecimento inesperado. Normalmente, não deveria haver mais de um ou dois visitantes por mês.”

“E por quê?” San Lang perguntou.

Xie Lian olhou para ele e sorriu. “Isso foi provavelmente graças à sua boa sorte.”

Dizendo aquilo, ele se lembrou que queria trocar as cortinas da porta, então entrou e pegou um novo conjunto de panos para pendurar na entrada da frente. Dando um passo para trás para admirar seu trabalho, percebeu que San Lang ainda estava parado do outro lado.

“O que houve?”.

San Lang mirava as cortinas perdido em pensamentos. Seguindo seu olhar, Xie Lian percebeu que na verdade ele observava o encantamento desenhado no tecido.

Era uma formação mágica que o príncipe havia rascunhado anteriormente, complexa e rígida. Originalmente, seu objetivo era manter o mal afastado e proteger o local de invasores, mas como havia sido Xie Lian que a desenhara, quem poderia dizer que não atrairia má sorte ao invés disso? Como não havia porta, no entanto, ainda era mais seguro colocá-la como proteção apenas por desencargo.

Vendo o rapaz travado no lugar em frente à cortina com o encantamento, a mente de Xie Lian revirou.

Ele chamou, “San Lang?”.

Seria possível que a formação mágica havia bloqueado San Lang para fora da porta, impedindo-o de entrar no santuário?



Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil

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