Capítulo 17 | Novel 'Benção do Oficial do Céu'

setembro 18, 2021 0

 


CAPÍTULO 17 - Histórias do Vale da Meia Lua Contadas no Santuário Puqi

Benção do Oficial do Céu






San Lang lançou-lhe um olhar e deu um sorriso. “Vou dar uma caminhada, já volto.”

Ele se virou e saiu depois de pronunciar aquelas palavras casualmente. Xie Lian cogitou ir atrás dele para lhe perguntar o que havia de errado, porém tinha a estranha sensação que, já que o rapaz dissera “já volto”, então realmente não demoraria, ele certamente voltaria. Assim, o deus voltou para dentro do santuário.

Xie Lian começou a revirar sua grande sacola de sucata e tirou de lá um wok e uma faca de açougueiro, analisando os vegetais no altar ao se levantar. Depois do período de um incenso, o som de passos se aproximando da cabana pôde ser ouvido, assim como esperado. Pela leveza e despreocupação das pisadas, era possível imaginar que pertenciam a um jovem rapaz, caminhando languidamente. Os objetos nas mãos do príncipe agora haviam se transformado em dois pratos de comida, mas observando seu trabalho, não pôde evitar soltar um suspiro com a visão trágica do resultado. Colocando os pratos na mesa, ele saiu para dar uma olhada. Acertando em suas suposições, San Lang havia retornado.

Do lado de fora do santuário, o rapaz se aproximava com sua túnica vermelha amarrada na cintura, talvez por causa do sol escaldante, revelando a camisa branca que usava por baixo com suas mangas enroladas nos cotovelos, limpas e arrumadas. Seu pé direito pisou em cima de uma larga tábua de madeira e ele carregava uma machadinha em sua mão esquerda. A ferramenta provavelmente havia sido pega emprestada de algum dos aldeões ali perto e parecia cega e pesada, mas ele a brandia facilmente como se fosse uma lâmina afiada. San Lang despreocupadamente atingia a tábua, cortando a madeira como se fosse massa de pão. Olhando pelo canto dos olhos, ele viu Xie Lian aparecer na entrada.

“Estou apenas fazendo algo,” disse.

Xie Lian assistiu San Lang trabalhar, logo percebendo que na verdade ele estava fazendo uma porta! Era do tamanho perfeito, detalhada e requintada. O príncipe pensara que, como o outro vinha de uma família bem afortunada, não seria do tipo de fazer trabalhos manuais, mas aquele obviamente não era o caso. Realmente, havia mais nele do que os olhos podiam ver.

“Obrigado por seu trabalho duro, San Lang.” Xie Lian agradeceu.

San Lang simplesmente sorriu, deixou a machadinha de lado e instalou a porta. Ele deu duas batidas no objeto e falou, “Se vai desenhar um encantamento, ao menos deveria fazê-lo em uma porta de verdade. Vai funcionar melhor.”

Então, ele afastou as cortinas e entrou no santuário. 

Parecia que a formação mágica nos tecidos realmente não tinha efeito nele e nem ao menos o abalou.

Xie Lian fechou sua nova porta atrás de si, mas não pôde evitar abri-la novamente, depois fechá-la mais uma vez. Ele continuou a abrindo e fechando, várias vezes. Maravilhado com a qualidade do trabalho, Xie Lian repetiu o movimento por algum tempo até perceber o quão bobo deveria parecer. San Lang já havia se sentado lá dentro e o deus finalmente deixou a porta para pegar alguns bolinhos no vapor que os aldeões haviam deixado na mesa do altar como oferenda mais cedo.

San Lang deu uma olhada para os bolinhos e não disse nada. Ele apenas riu suavemente como se soubesse de algo que o outro não, mas Xie Lian ignorou aquilo e estendeu seu braço para lhes servir duas vasilhas de água. Quando estava prestes a se sentar, viu o outro arrumar suas mangas. Havia uma linha fina de caracteres estranhos desenhada em um de seus braços como uma tatuagem. San Lang percebeu seu olhar e abaixou suas mangas com um sorriso.

“Foi feita quando eu era criança.”

Era óbvio que não queria falar mais do que aquilo sobre o assunto, então Xie Lian não o pressionou. O príncipe se sentou e olhou novamente para o retrato em cima do altar.

Ele disse, “San Lang, você pinta tão bem. Foi alguém na sua casa que lhe ensinou?”.

“Não, eu apenas pinto por diversão.” O rapaz respondeu, espetando um bolinho com seus kuaizi[1].

“Como você ao menos sabe como pintar o Príncipe de Xianle?” Xie Lian perguntou.

“Você não disse que eu sabia de tudo? É claro que sei como pintá-lo também.” San Lang riu.

Aquela era uma maneira deveras descarada de se responder, mas San Lang evidentemente não ligava se o que dizia causaria suspeitas em Xie Lian, nem tinha medo de ser questionado, então o príncipe simplesmente sorriu e deixou o assunto morrer.

Justo naquele momento, uma comoção foi ouvida novamente do lado de fora do santuário. Ambos levantaram suas cabeças ao mesmo tempo e trocaram olhares. Alguém começou a bater na porta com urgência, gritando.

“Grande imortal, algo aconteceu! Grande mortal, ajude!”.

Xie Lian abriu a porta e deu de cara com um considerável número de aldeões rodeando sua entrada. Quando o chefe o viu do outro lado, soltou um suspiro de alívio.

“Grande imortal, esta pessoa parece que está morrendo. Por favor, salve-o!”.

Ouvindo aquilo, Xie Lian correu para o grupo de pessoas em círculo em volta de algo que aparentava ser um cultivador. Ele era desgrenhado e despenteado, com areia por toda a sua roupa, e seus robes e sapatos estavam rasgados. Parecia que havia fugido de algo por um bom tempo antes de chegar ao vilarejo e finalmente colapsar, sendo encontrado pelos aldeões que o levaram às pressas até o Santuário Puqi.

Xie Lian disse a eles, “Não se preocupem, ele não está morto.”

O deus se abaixou e sentiu o pulso do homem em vários pontos de pressão. Em seu corpo, Xie Lian encontrou alguns acessórios mágicos, como um mapa dos oito trigramas[2], uma espada de aço, entre outros. Aquela pessoa não parecia ser um cultivador comum e o coração do príncipe se apertou.

Não muito depois, o homem lentamente abriu seus olhos e perguntou em uma voz arrastada, “... Onde eu estou?”.

O chefe exclamou, “Este é o Vilarejo Puqi!”.

O cultivador murmurou para si mesmo, “... Eu saí, eu saí… Finalmente escapei…” Ele olhou ao redor e arregalou os olhos, gritando em terror. “M-ME SALVEM! ME AJUDEM!”.

Xie Lian já esperava aquela reação e gentilmente indagou, “Meu amigo, o que houve? Do que você está correndo? Não tenha medo, tome seu tempo e diga claramente…”

“É, não tenha medo! Temos um deus ao nosso lado, ele definitivamente resolverá todos os seus problemas!”.

Xie Lian, “???”.

Nenhum destes aldeões o havia visto realizar algum milagre, mas certamente haviam se tornado bastante devotos e não tinha muito que o príncipe podia dizer.

“Resolver todos os problemas? Não há garantia disso…”

Xie Lian perguntou ao cultivador, “De onde você veio?”.

“Eu… Eu vim do Vale da Meia Lua[3]!” Aquele homem respondeu. 

Os aldeões olharam um para os outros.

“Onde fica isso?”.

“Nunca ouvi falar.”

Xie Lian explicou, “O Vale da Meia Lua fica no noroeste, há uma boa distância daqui. Como você conseguiu chegar até aqui?”.

“Eu… Eu finalmente escapei e cheguei até aqui…”

Suas palavras eram incoerentes e seu estado de espírito instável. Em uma situação como aquela, com tantas pessoas em volta, seria difícil extrair respostas dele com todos falando ao mesmo tempo. 

Então, Xie Lian disse, definitivo, “Vamos conversar lá dentro.”

O deus facilmente levantou o cultivador do chão e o ajudou a entrar no santuário. Ele virou para os outros aldeões e afirmou, “Pessoal, por favor voltam para suas casas. Não precisam ficar aqui.”

“Grande imortal, o que aconteceu com ele?”.

“É, o que está acontecendo?”.

“Se pudermos ajudar de alguma forma…”

Os cidadãos eram muito entusiasmados, mas aquela era precisamente a razão pela qual tornavam as coisas mais complicadas.

Sem outra escolha, Xie Lian falou seriamente a eles, “Ele… talvez tenha sido enfeitiçado.”

Ouvindo aquilo, todos começaram a ficar alarmados. Feitiçaria não era brincadeira! Melhor não permanecer ali realmente. O grupo se separou e cada um deles correu para longe. Xie Lian não sabia se ria ou chorava, balançando a cabeça ao fechar a porta. San Lang ainda estava sentado à mesa brincando com seus palitinhos e observou o cultivador cuidadosamente.

“Não se preocupe com ele. Pode continuar a comer.” O príncipe lhe assegurou. Ele, então, colocou o homem sentado no outro banquinho e esticou as costas. “Meu amigo, eu sou o mestre deste santuário e também… um tipo de cultivador. Não fique nervoso, você pode nos dizer o que houve. Se precisa de ajuda em alguma coisa, eu posso lhe dar uma mão. Você havia mencionado o Vale da Meia Lua?”.

O outro tomou um tempo para recuperar o fôlego. Depois de perceber que estava em um local menos tumultuado e escutar as palavras reconfortantes de Xie Lian, ele finalmente se acalmou.

“Você já ouviu falar do Vale da Meia Lua?”.

“Já sim,” Xie Lian assentiu. “É uma cidade[4] construída em um oásis no Deserto de Gobi. Recebeu este nome por causa da beleza de sua vista noturna. Ouvi dizer que quando a lua minguante aparece no céu é uma cena incomparável.”

“Oásis? Beleza?” O cultivador balançou sua cabeça. “Isso foi há duzentos anos atrás! Meia Lua? Está mais para Meio Morte.”

“O que quer dizer?” O deus indagou.

O rosto do homem ficou tão branco quanto papel. “Porque ao menos metade das pessoas que passam pelos portões da cidade desaparecem!”.

Xie Lian nunca havia escutado sobre aquilo. “De onde você ouviu isso?”.

“Eu não ouvi de ninguém! Eu vi com meus próprios olhos!” O homem se empertigou em seu assento. “Havia um grupo de mercadores que precisava cruzar o deserto. O lugar não é seguro, então eles contrataram minha seita inteira para lhes proteger em sua jornada. Mas…” Ele exclamou furioso, “Mas no final, eu fui o único que restou!”.

Xie Lian abanou sua mão, indicando-o para que se acalmasse. “Quantas pessoas havia em seu grupo?”.

“Entre a minha seita e os mercadores, havia aproximadamente sessenta pessoas.”

Sessenta. Nos cem anos em que Xuan Ji causou miséria na Montanha Yujun, apenas duzentas pessoas ou mais haviam perdido suas vidas de acordo com Ling Wen. Porém, segundo o que aquele cultivador dizia, este caso já se prolongava por mais de duzentos anos. Se tantas pessoas desapareceram naquele local durante dois séculos, então os números eram bastante significantes ao serem somados. 

“Quando o Vale da Meia Lua se tornou o Vale da Meia Morte?” O deus questionou.

O homem respondeu, “Por volta de cinquenta ou cem anos atrás? Foi logo após a cidade se tornar o covil de um fantasma.”

Xie Lian queria perguntar sobre o malfeitor com mais detalhes, mas não conseguia se livrar da sensação de que havia algo errado naquela história e que aquilo realmente não lhe caía bem. Naquele ponto, já não havia mais como esconder o estranho sentimento que se apoderava de seu coração. Ele franziu as sobrancelhas e ficou em silêncio.

Subitamente, a voz de San Lang soou, “Você escapou do Vale da Meia Lua e não parou de correr até agora?”.

“Sim! Ah, eu quase não sobrevivi!” O cultivador suspirou.

“Sério?” San Lang parou de falar, mas Xie Lian entendeu o que havia de errado.

Ele se virou e disse gentilmente, “Você deve estar com sede já que veio correndo de tão longe.”

O homem travou em suas palavras, mas o príncipe já havia colocado a vasilha com água em sua frente.

“Aqui. Tome um pouco d’água.”

A hesitação podia ser vista na expressão daquele sujeito ao olhar para o líquido. Xie Lian permaneceu ao seu lado com suas mãos dentro das mangas, aguardando pacientemente.

Aquele homem havia viajado do noroeste até ali sem parar, correndo por sua vida. Ele deveria estar faminto e sedento. Por sua aparência, parecia realmente que não havia comido ou bebido nada durante todo o percurso. No entanto, quanto acordou, tudo o que fez foi falar e não pediu em momento algum por um pouco de água ou algo para comer, e também não demonstrava ânsia ao ficar cara a cara com as oferendas em cima do altar depois de entrar no santuário. Na verdade, ele ao menos chegou a olhar para elas.

Verdadeiramente, um pouco estranho para um ser vivo.



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[1] [筷子] Variação chinesa dos palitinhos orientais.

[2] [卦] (gua) Os Trigramas são desenhos que correspondem às 8 possibilidades de combinação de Yin Yang em três linhas. São elementos que estruturam o livro chinês Yijing.

[3] [半月] Vale “Banyue” ou, literalmente “meia-lua”. Este nome será importante mais para frente.

[4] [城墙] (chengqiang) Uma cidade murada ou, neste caso, uma cidade estado.



Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil


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