Capítulo 2 | Novel 'A Lenda do Exorcismo'

setembro 03, 2021 0

 


CAPÍTULO 2 - Memórias de Velhos Tempos

A Lenda do Exorcismo





Qing Xiong casualmente segurou Hongjun e o tirou de suas costas, fazendo cócegas nele algumas vezes, o que o pôs a rir histericamente com sinceridade. O mais velho ordenou que se arrumasse e perguntou, “Causou confusão de novo?”.

As mãos de Hongjun ainda estavam sujas de cinzas e sem pensar duas vezes as esfregou por todo o rosto de Qing Xiong. Vendo o quão engraçado ele parecia, o rapaz não conseguiu se conter e começou a rir novamente enquanto apontava para o outro. Qing Xiong estava perplexo, mas Hongjun veio a explicar com vívidos detalhes o que havia ocorrido. Depois de saber o motivo pelo qual Chong Ming havia tão gravemente perdido a compostura, não pôde segurar a própria risada também.

Os dois gargalharam e sorriram por um tempo antes que Hongjun indagasse severamente, “O que você trouxe para mim dessa vez? Me dá!”

Qing Xiong respondeu, “Eu não tenho nada.”

Hongjun não acreditou nele, então começou a procurar por todo o seu corpo. Qing Xiong geralmente estava desnudo da cintura para cima, tendo somente dois bolsos em sua saia onde poderia guardar as coisas. O garoto se recusou a desistir e tentava encontrar algo dentro deles, no entanto, o mais velho afirmou solenemente, “Eu realmente não tenho nada.”

“Sem livros e sem comida também.” Hongjun fez uma cara chateada.

Qing Xiong riu, “Eu trouxe a você algumas lendas da última vez, já acabou de ler todas elas?”.

O rapaz respondeu, “Já virei tanto as páginas que ficaram gastas.”

Vendo o rosto do sobrinho coberto de desapontamento, Qing Xiong não pôde evitar continuar provocando-o e questionou novamente, “Onde está o Zhao Zilong de sua família?”.

“Está aqui,” ele o chamou e o yao carpa apareceu em passos rápidos. Cinco anos atrás, Hongjun acidentalmente encontrara esta carpa meio-humana nas montanhas Taihang, que falhara em sua tentativa de se tornar um homem, e começou a cuidar dele por pena. Mais tarde, Qing Xiong lhe trouxe algumas lendas sobre os Heróis dos Três Reinos. Hongjun ficou tão encantado com elas que nomeou a carpa de “Zhao Zilong[1]” e até mesmo anunciou a todos que um dia ela iria atravessar o portal de dragão e se transformaria em um dragão dourado[2].

Qing Xiong fechou sua mão como se estivesse realizando um truque de mágica. Quando a abriu, ele segurava uma corrente presa entre seus dedos com um tesouro pendurado, balançando-a em frente aos olhos de Hongjun. 

“O que é isso?!” O rapaz perguntou surpreso.

A joia era um tanto pequena e exótica, como um pingente preso à corrente de ouro. Era feita de lapis lazuli e envolta em camadas de metal, e no meio, emitindo uma gentil luz branca fracamente discernível, havia uma excepcionalmente diminuta esfera de cristal, brilhando como uma lâmpada. Quando Qing Xiong levantou o pendente, o pátio iluminou-se também, seu esplendor não incomparável ao sol escaldante no céu.

“Vou deixá-lo em suas mãos por enquanto.” Qing Xiong colocou a joia na palma de Hongjun. Ele enrolou a corrente de ouro e sorriu ao dizer, “Eu não ouso mais ser negligente ao lhe ensinar como usar artefatos mágicos, seu pai vai me repreender.”

Depois de receber o delicado objeto, Hongjun imediatamente quis estudá-lo com detalhes, então balançou a cabeça. Qing Xiong exortou novamente, “Você não pode quebrá-lo. Este cristal é extremamente frágil, vou ensiná-lo como usá-lo mais tarde.”

Hongjun respondeu com pressa antes de sair dali com o colar em mãos.

 

 

 

“Ele já tem dezesseis anos.”

Quando Qing Xiong entrou em um corredor adjunto do palácio, Chong Ming estava tomando chá. Ele sentou à sua frente na mesa e lançou um olhar para o outro.

“Ele causou problemas de novo hoje e foi severamente punido por mim.” Chong Ming falou indiferente.

Qing Xiong respondeu, “Jovens têm o costume de entrar em confusões. No passado, você, Kong Xuan e eu também tivemos nossa parcela de aventuras.”

Chong Ming arqueou uma sobrancelha e disse, “Ele ainda não está pronto.”

Qing Xiong suspirou, “Eu recebi esta carta ontem à noite. Foi enviada pelo Departamento de Exorcismo no mundo humano. Temos menos de quatro anos antes que Mara[3] apareça neste mundo novamente. A carta está chamando jovens talentos para ir à Chang’an, presumo que estejam fazendo isso para se preparar para o retorno de Mara daqui há alguns anos…”

Ele entregou a carta à Chong Ming, no entanto, o outro sequer se importou em olhá-la. A fênix, então, esfregou os dedos e uma esfera quente e flamejante foi formada na ponta de seus dígitos, tendo como alvo o papel na mesa. Qing Xiong não estava disposto a queimar a carta, então pegou-a de volta.

“Chong Ming, demônios correm soltos no mundo neste exato momento. Não há muitos talentos de Tang restantes, não temos tempo o suficiente.”

Chong Ming virou a cabeça e mirou diretamente os olhos de Qing Xiong, enunciando cada palavra claramente, “Não se esqueça, somos demônios também.”

“Você ainda se lembra disso?” Qing Xiong disse, “Pensei que havia se esquecido há muito tempo, Sua Majestade, o Rei Yao.”

Chong Ming instantaneamente envolveu-se em um ar formidável, como se houvesse chamas violentas queimando brilhantes por todo o seu corpo. Suas sobrancelhas franziram profundamente, olhando furioso para o outro.

 

 

 

Enquanto isso, no escritório, Hongjun a princípio tentou abrir o pingente com duas facas de arremesso, depois testou cortá-lo com um par de tesouras, mas ainda assim não foi capaz de retirar o mecanismo de metal envolvendo a esfera no colar. Afinal, ele o atingiu com um martelo, no entanto, mesmo depois de dar diversas marteladas até que sua testa pingasse de suor, nem o cristal nem as camadas de metal mostraram reação.

“AAAAHHH—” Hongjun agarrou um frasco de bronze e queria esmagar o pingente com aquilo.

“Por que está lutando contra isso?” O yao carpa questionou ao seu lado, “Sua Alteza Qing Xiong lhe avisou mais cedo que não devia quebrá-lo.”

“Eu só quero tirar o cristal.” Hongjun respondeu, “E colocá-lo no cabo da minha faca.”

“A luz dentro dele definitivamente não é ordinária.” O yao carpa escalou a mesa e subiu em um livro, deitando-se em sua barriga. A luz resplandecente do pingente era refletida em seus olhos de peixe.

“Há um círculo de encantamentos ao seu redor.” Hongjun disse enquanto o analisava, “Para que diabos eles servem? Para selá-lo? Esta luz parece tão confortável.”

“Eu me sinto quente apenas olhando para ela.” Zhao Zilong falou, “E me sinto muito melhor também.”

Hongjun guardou o pingente e comentou, “Vamos perguntar ao Qing Xiong.”

“Seu castigo ainda não acabou!” O yao carpa o lembrou, mas Hongjun já havia saído animadamente segurando o colar.

O sol poente vermelho como sangue atravessava as montanhas e o canto dos pássaros viajava em ondas pelos picos da cordilheira banhados na luz cálida.

Quando Hongjun entrou no palácio adjunto, subitamente ouviu os sons de uma discussão calorosa vindo do final do corredor. Assustando-se, ele se escondeu atrás de uma coluna.

“Aquele jiao[4] negro não obteve sua posição por meios justos, ele nunca será o Rei Yao! Ele não passa de um réptil de esgoto, como poderia ser digno deste título?!”.

“Mas nós perdemos a guerra, esta é a verdade incontestável!” Qing Xiong disse em uma voz grave, “A não ser que retornemos ao mundo humano para destruí-lo completamente, Mara ressuscitará e comandará os demônios, o mundo será jogado em um abismo de miséria!”.

“E o que eu tenho a ver se eles forem jogados em um abismo de miséria?!” Chong Ming explodiu, “Humanos desprezam as morais por dinheiro e são todos um bando de ingratos! Eles levaram nosso terceiro irmão[5], depois me entregaram o filho dele e de alguma humana para que eu o criasse por 12 anos! Por que eu tenho de cuidar de um órfão com sangue humano correndo em suas veias?!”.

“Ele ainda é o filho de Kong Xuan!” Sua voz era austera, seu tom de óbvio repreendimento. “Quando ele morreu, você não sentiu o mínimo remorso?!”.

“Como poderia sentir remorso?!” Chong Ming praticamente rugia, “Se não fosse por aquela pessoa que causou sua morte, Hongjun não seria hoje uma criança sem o pai e a mãe!”.

“Há humanos ingratos que ignoram as morais por lucros, de fato, mas há também humanos amigos como Di Renjie.”

“Amigo?!” Chong Ming zombou. “Ele não faria nada pelos humanos! Definitivamente não!”.

A voz de Qing Xiong tremeu, “Kong Xuan era um dos Demônios Sagrados. Hongjun herdou sua Luz Sagrada Pentacromática, ele pode erradicar aquele jiao negro entre os yaos, vingar seu pai e impedir a ressurreição de Mara. Além disso, mesmo que o prenda aqui pelo resto da vida, ele descobrirá a verdade mais cedo ou mais tarde!”.

“No dia em que deixei as Planícies Centrais,” Chong Ming proferiu em uma voz profunda, “Eu disse que não me importaria mais se os yaos vivessem ou morressem. Mara? Eu apenas espero que Mara ressuscite o quanto antes para acabar com todos esses humanos desgraçados!”.

“Não consegue ser um pouco mais honesto?! Chong Ming!” Qing Xiong deu um passo à frente. Um ar de imposição irrompeu de seu corpo e subitamente o palácio adjunto foi preenchido com uma energia ameaçadora. Enquanto os dois confrontavam um ao outro, as xícaras de chá tremiam constantemente sobre a mesa, emitindo um suave som de porcelana se chocando, enquanto os painéis das janelas chacoalhavam também. 

De repente, passos foram ouvidos do lado de fora e Qing Xiong e Chong Ming dispersaram suas auras autoritárias ao mesmo tempo enquanto viravam suas cabeças abruptamente.

Qing Xiong deu alguns passos para frente, prestes a ir atrás da fonte do som, contudo, tudo o que viu foram as costas de Hongjun.

“Quando Kong Xuan partiu, se você tivesse dito apenas uma palavra pedindo para que ficasse, as coisas estariam como hoje?” ele suspirou. “As últimas palavras que ,disse a ele foram apenas ‘vá embora’ e, dali em diante, os vivos e os mortos foram para sempre separados pelos céus.”

Assim que terminou de falar, Qing Xiong caminhou para fora do palácio adjunto, deixando Chong Ming sozinho a observar a luz do crepúsculo além das portas, que trouxe com ela um silêncio atordoante.

 

 

 

À noite, o céu estava repleto de estrelas e o rio refletindo seu brilho no cume das montanhas Taihang parecia uma cachoeira.

Passos podiam ser ouvidos à distância, mas Hongjun não moveu um único músculo enquanto estirava-se em uma rocha plana no Penhasco do Sacrifício. O rochedo inclinava-se para baixo como se olhasse para o fundo do abismo, e se a pessoa não fosse cuidadosa, poderia facilmente escorregar dali e perder-se na infinidade a qualquer momento.

Qing Xiong subiu a pedra e deitou ao lado de Hongjun, ambos perdendo-se em pensamentos enquanto admiravam a noite azul e o cintilante céu estrelado.

“É verdade?” O rapaz perguntou de repente.

“Verdade ou não, você já tem uma resposta para essa pergunta em seu coração.” Qing Xiong respondeu.

Hongjun não conseguia respirar direito, mas Qing Xiong levantou sua mão e a levou até seus olhos, deixando que o sobrinho a pegasse e usasse para secar suas lágrimas.

“O Pai me odeia?” Ele soluçou enquanto falava.

“O que ele diz é geralmente diferente do que ele pensa.” Qing Xiong disse em um transe, “Não o culpe pelo que ele falou. Se ele realmente não estiver disposto, não há ninguém no mundo capaz de forçá-lo a fazer o contrário. Você ainda tem o que eu lhe dei hoje?”.

Hongjun buscou o pingente enquanto tremia.

“Você não queria ir ao mundo humano?” O homem pegou o colar de volta. A luz gentil dentro do cristal iluminou metade da montanha em um instante junto ao esplendor das estrelas que preenchiam o céu. Banhado por aquela luminosidade, Hongjun gradualmente se acalmou.

“Toda vez que eu venho visitar você sempre tenta me convencer a levá-lo para o mundo humano. Você já está crescido agora,” Continuou, “Então, eu digo, vá, sim? Por que ter medo?”.

O garoto ficou animado a princípio, mas então imediatamente pensou em Chong Ming e sua expressão se tornou sombria novamente. Ele mirou o mais velho, aturdido.

Qing Xiong encarou a luz cintilante do pingente enquanto murmurava, “Há muitas coisas para comer no mundo humano, e muitas coisas divertidas para fazer também. Há belas moças, amigos com quem você pode beber, música que pode viajar por centenas de metros, lanternas que nunca apagam, seja dia ou seja noite. Vá, sim? Vá para o vasto mundo dos mortais. Você não se arrependerá.”

 

 

 

No dia seguinte, o palácio já havia sido completamente limpo.

Hongjun entrou no palácio adjunto, para onde os três tronos haviam sido movidos. Chong Ming sentava-se no do meio, enquanto Qing Xiong estava no da esquerda, a expressão do mais velho indiferente como  sempre. O rapaz chamou, “Pai,” então, empertigou-se respeitosamente em um canto.

“Eu não sou seu pai.” No trono, a voz de Chong Ming ainda soava como se não carregasse sentimentos.

Hongjun permaneceu imóvel, parecendo pouco à vontade. Ele respondeu, “Você é, você é meu pai.” Contudo, o olhar de Chong Ming caiu sobre o trono vazio na sala. 

“O nome do seu pai é Kong Xuan.” O homem disse numa voz profunda, “Assim como Qing Xiong e eu, ele era um dos mestres do Palácio Yaojin. Você já me perguntou antes sobre quem sentava no último trono, agora eu posso lhe dar a resposta.”

“Aquele que uma vez sentou neste trono era seu pai biológico. Depois que ele morreu, Qing Xiong te trouxe de volta ao Palácio Yaojin. Agora que você cresceu, está na hora de voltar.”

“Para onde devo voltar?” Hongjun perguntou.

“Você deve voltar para onde veio.” Chong Ming respondeu suavemente.

“Meu lugar é aqui.” O rapaz afirmou, “Eu não vou a lugar algum.”



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[1] O nome se origina da história de Zhao Yun, um dos Cinco Generais Tigres, que viveu entre 168 e 229 d.C e cujo apelido era “Zhao Zilong” (“criança dragão”).

[2] Esta referência também vem de uma fábula chinesa. Na mitologia, Longmen ou “O Portal do Dragão”, é localizado no topo de uma cachoeira que cai de uma montanha lendária. A lenda diz que, mesmo que muitas carpas nadem contra a forte corrente do rio, poucas são capazes ou corajosas o suficiente para saltar a cachoeira. Assim, se uma carpa saltar o portal com sucesso, se transformará em um poderoso dragão.

[3] “Demônio Divino”

[4] Jiaolong, ou jiao, é um dragão da mitologia chinesa, muitas vezes definido como um “dragão com escamas”, sem chifres de acordo com alguns estudiosos, e que dizem ser aquáticos ou ribeirinhos.

[5] A expressão usada aqui é [老三] (Lao San), um jeito comum de se referir a irmãos, de sangue ou não, com 三 referindo-se a ‘três’, então a pessoa citada é o terceiro mais velho.



Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil

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