Capítulo 4 | Novel 'A Lenda do Exorcismo'

setembro 03, 2021 0

 

CAPÍTULO 4 - A Luz Sagrada Entra no Mundo

A Lenda do Exorcismo






Um mês depois.

 

A chuva torrencial inundava as planícies com vigor sob a noite escura e tempestuosa onde não se podia ver ao menos um palmo à frente. Os trovões retumbavam e relâmpagos incandesciam pelos céus, iluminando toda a terra abaixo. 

“Eu não sei para onde ele correu!” Hongjun tentava secar seu rosto enquanto olhava de um lado para o outro no infinito breu. Parecia haver inúmeros perigos espreitando àquela hora, o qi demoníaco estava em todo lugar.

“Pare de persegui-lo!” O yao carpa seguia atrás dele, gritando, “Estamos quase chegando à Chang’an!”.

Hongjun bradou de volta, “Temos que nos livrar do máximo que conseguirmos!”.

O rapaz parou entre as planícies, encharcado da cabeça aos pés. Fios de cabelo grudavam em sua testa enquanto ele tentava recuperar o fôlego. Depois de uma árdua jornada de um mês inteiro onde ele viajou das montanhas Taihang até Guanlong, suas roupas já estavam surradas a ponto de ser impossível consertá-las. Metade de seu corpo ainda sangrava, mas o líquido vermelho era lavado com a chuva que escorria por seus membros e infiltrava-se na lama.

Naquele momento, sua mente estava tomada pelas imagens de cabanas de madeira incendiadas nas planícies Qinchuan, assim como lembranças horrendas de crianças com metade de suas cabeças comidas.

Ele analisava seus arredores com cuidado. O barulho da chuva encobria os sons abafados do yao viajando sob a terra abaixo de seus pés. Após um clarão de relâmpago, parecia que restava apenas o aguaceiro no mundo. Naquela escuridão, o pingente que pendia em seu pescoço era a única fonte de luz, emitindo um brilho caloroso.

E então, um alto BOOM foi ouvido. Subitamente, um yao negro e lúgubre de quase sete metros irrompeu do meio dos campos de trigo, sua bocarra aberta coberta com filas de dentes afiados e sinistros, e sua cabeça ostentava cinco olhos da cor de sangue. Parecia com um peixe-gato do tamanho de uma casa, no entanto, possuía quatro patas cheias de garras ainda pingando com muco ao que avançou na cabeça de Hongjun.

“É um peixe ao[1]!”.

O yao carpa exclamou enquanto o garoto virava-se de súbito. Ele jogou as duas mãos para frente, criando uma barreira de luz que parecia vinda de um sonho. Aquele peixe ao colidiu diretamente com a proteção e soltou um grunhido doloroso enquanto caía para trás.

Em um piscar de olhos, Hongjun girou sua Faca de Arremesso entre os dedos antes de atirá-la contra aquele demônio, atingindo em cheio seu olho central bem no meio de sua cabeça.

As Facas de Arremesso Zhanxian eram uma relíquia deixada para trás pelo ancestral Imortal Luya[2], dividida entre os quatro elementos — água, fogo, vento e relâmpago[3]. Naquela hora, a faca de relâmpago que havia sido jogada instantaneamente criou lampejos de raios no céu que caíram como uma cachoeira. O peixe ao virou sua cabeça para desviar, mas o olho atingido em sua testa tornou-se cego com o poder da lâmina. Ele imediatamente soltou um rugido estrondoso e começou a se debater na lama antes de se enterrar no solo e desaparecer.

Não muito depois, a terra barrosa foi espirrada à distância na estrada. O chão rachou como uma onda e voou para todos os lados. Hongjun agarrou o yao carpa e o enfiou dentro da bolsa no mesmo instante, montando seu cavalo e partindo com um alto “Iá!”.

A cidade de Chang’an estava envolta na escuridão trazida pela tempestade. Vários soldados no topo das muralhas usavam chapéus de bambu enquanto sentavam-se debaixo de beirais que bloqueavam a chuva torrencial. De repente, o rugido penetrante de um yao monstruoso pôde ser ouvido além da cidade.

“O que está acontecendo lá fora?!”.

Os soldados foram todos acordados aos saltos um após o outro, reunindo-se nos postos acima dos muros. Enquanto os raios reluziam pelos céus, eles podiam ver uma estranha cena se desenrolando na estrada nos arredores da cidade, algo brilhante se movendo pela lama. Barro era jogado aos montes enquanto o solo rachava ao meio, como se houvesse uma carruagem invisível correndo furiosamente em direção aos portões de Chang’an sob a via de terra. 

Atrás dele, alguém o perseguia a cavalo em um frenesi, gritando como louco, “Para onde você está fugindo?!”.

“Preparem os arcos! Atirem!”.

“Chang’an tem um toque de recolher! Você não pode entrar na cidade—”.

Contudo, o aviso veio muito tarde, ou podia-se dizer também que o evento inesperado ocorreu rápido demais. Antes que o líder no comando da defesa das muralhas pudesse terminar de falar, o gigante invisível rodeado de raios já havia se chocado diretamente com o fosso que protegia a cidade.

AO—” Com um rugido ensurdecedor, uma enorme criatura negra saiu de dentro da vala e pulou.

Todos os soldados em cima dos muros encaravam boquiabertos o gigantesco peixe ao com quatro patas que batia sua cauda. Ele se lançara alto no céu, sua testa ainda iluminada com eletricidade que tremeluzia.

Seu salto atingiu mais de dez metros no ar, trazendo consigo uma onda de lodo e água do fosso. E então, ele inclinou seu enorme corpo e fez um arco sobre os portões, esmagando as telhas dos beirais em pedaços antes de cair dentro da cidade.

Líder da defesa, “...”

No instante seguinte, o enorme demônio aterrissou com um estrondo dentro de Chang’an, tijolos de pedra destruídos voando em todas as direções. O yao se enterrou no solo novamente antes de seguir pela estrada principal da cidade com uma corrente elétrica que podia ser vista acima da superfície da terra.

“AH—” Somente então as dúzias de guardas saíram de seus transes e gritaram em pânico.

“Pare de persegui-lo!” Uma voz bradou noite adentro.

“Minha Faca de Arremesso ainda está nele!” Outra voz exclamou em resposta.

“Invoque a faca de volta, então! Você é burro?!”.

“Não posso chamá-la de volta! O peixe ao não consegue escapar pelo subsolo porque minha faca está nele. Se eu a invocar de volta, ele irá se enterrar completamente e desaparecer!”.

Imediatamente após essas palavras, um gancho de escalada foi atirado em direção ao telhado das muralhas de Chang’an com um som cortante. Uma figura forte e esguia voou por ele como uma deidade, iluminada por uma luz branca. Os guardas mais uma vez puderam apenas observar quando Hongjun aterrissou nas telhas, jogando seus braços para frente enquanto tomava impulso antes de saltar dali e entrar na cidade.

“R-r-rápido… rápido, informem os soldados imperiais!” O líder gritou consternado do topo das muralhas.

Dentro de Chang’an, Hongjun jogou seu gancho novamente e o prendeu nos beirais de um dos lados da estrada, reduzindo a velocidade de sua queda antes de rolar pelo chão até parar.

“Para onde ele foi?” Perguntou.

“Eu disse para não o perseguir…” Zhao Zilong falou abafado dentro da bolsa de Hongjun, colocando sua cabeça para fora para beber a água da chuva com sua boca de peixe que abria e fechava divertidamente.

“Mas eu já fiz isso!” O rapaz disse, “Você pode parar de me importunar?”.

“Atrás de você, atrás de você!” O yao carpa começou a gritar de repente, vendo um clarão de eletricidade rapidamente virar uma esquina.

“Quem está cometendo crimes a esta hora da noite?!”.

“Aquele que está brilhando! Peguem-no!”.

O som dos cascos de cavalos batendo no chão podia ser ouvido. Soldados patrulheiros no turno da noite apareceram como um raio correndo em sua direção, acompanhados por uma chuva de flechas. O yao carpa soltou um “Droga!” e rapidamente instruiu Hongjun a recuar. O rapaz virou e dobrou a esquina, perseguindo o enorme demônio. Pedaços de telhas quebradas estavam espalhadas por todo o chão, mas nem um traço do peixe ao podia ser visto mais. Ao invés disso, em seu lugar havia entulhos de um beco adjacente e os gritos apavorados das pessoas no meio da noite.

“Onde estamos?” Hongjun finalmente voltou a analisar seus arredores. Ele olhou para cima tentando achar um beiral onde pudesse prender seu gancho e tomar impulso, mas percebeu que estava profundamente dentro do beco e ambos os lados eram lisos, sem nada onde pudesse se agarrar.

“Alguém está vindo,” O yao carpa disse novamente em suas costas.

Hongjun imediatamente virou-se, vendo que os soldados já o haviam alcançado. O oficial no comando exclamou, “Encontrei eles, estão aqui!”.

O rapaz continuou recuando, obviamente sem saber como lidar com a situação. Ele não podia matar mortais inocentes como se fossem demônios, não? Contudo, ao contrário de si, os guardas não se seguraram nem um pouco — com um som incisivo, flechas cortaram o céu e choveram em sua direção. Hongjun prontamente criou um escudo com sua luz sagrada defensiva e bloqueou todos os projéteis com um zumbido antes que ricocheteassem de volta com o poder da barreira. Alguém gritou em agonia no ato ao ser atingido e lançado para fora de seu cavalo.

“Você está bem?!” O garoto estava um pouco assustado, temendo que houvesse matado um mortal por acidente.

“Demônio!” Uma voz clara soou, “Renda-se!”.

Logo em seguida, um general militar correu em direção a Hongjun, espirrando a água da chuva no chão com seus passos velozes.

“Pare de lutar! Fuja!” Zhao Zilong urgiu.

“E para onde eu iria?” Hongjun continuava a desviar dos ataques do oficial, tentando não utilizar suas facas para se defender com medo de machucar o outro. Enquanto o fazia, ele gritou, “Eu não sou um demônio!”.

“Você é um demônio.” O yao carpa atrás de si o corrigiu. “Seu pai era um dos Grandes Yaos de sangue puro, como você não é um demônio?”.

Hongjun, “...”

Apesar do general militar não possuir mana, suas habilidades de kung fu eram excepcionais. Todas as vezes que o garoto tentava correr para fora do beco, seu caminho era bloqueado pela espada daquele oficial e ele era obrigado a ativar sua Luz Sagrada Pentacromática para se defender.

A chuva pesada manchava o céu e cobria a terra, enquanto trovões ressoavam à distância.

“Eu não quero lutar com você!” Hongjun gritou. Ele correu para a alta parede no final da rua estreita e, com apenas alguns passos, deu um mortal, tomando impulso no muro opositor para saltar sobre a cabeça do general militar em uma tentativa de fuga.

Porém, quem imaginaria que o oficial viraria subitamente e soltaria um longo brado enquanto se lançava para frente, atingindo Hongjun com ambos, seu corpo e sua espada. Surpreendentemente, no entanto, quando a lâmina que brandia tocou a Luz Sagrada Pentacromática, conseguiu penetrar a barreira protetora de Hongjun com um chiado.

Hongjun nunca imaginara que havia uma arma neste mundo capaz de atravessar sua luz sagrada defensiva. Ele imediatamente revolveu-se no ar, virou sua mão esquerda e bloqueou o ataque com sua direita, seu torso fazendo um arco para trás ao mesmo tempo.

Tudo aquilo ocorreu em menos de um minuto e parecia que as gotas de chuva que caíam ao seu redor haviam congelado no ar, cada uma delas refletindo uma cena lustrosa e bizarra.

Dentre o esplendor crescente, seu olhar encontrou o do general militar, mas no momento seguinte, a espada nas mãos do oficial estocou vigorosamente na direção de seu pescoço e o pingente pendurado no colar de Hongjun foi atingido enquanto flutuava.

A arma em suas mãos não é comum!” Aquele pensamento correu como um raio por sua mente. Mas era tarde demais, a espada primeiro cortou a corrente e, então, quebrou a joia. A esfera de cristal foi estilhaçada em pequenas partículas brilhantes com um som de vidro e, imediatamente depois, um clarão resplandecente e cegante explodiu em meio à ruela.

Um furacão de luz branca foi formado no centro da tempestuosa cidade de Chang’an, iluminando a magnífica capital do Grande Tang, fazendo até mesmo parecer que já era dia.

O brilho incandescente durou apenas por um momento efêmero. A rajada de vento que foi conjurada empurrou tanto a Hongjun quanto ao general militar ao mesmo tempo e o rapaz, jogado longe pelas correntes de ar, aterrissou bruscamente no chão.

Seus arredores caíram no silêncio novamente e apenas o barulho do dilúvio podia ser ouvido.

Hongjun resmungou enquanto tentava se levantar. Ele secou a água em seus olhos e subconscientemente tocou seu pescoço, imediatamente sentindo como se tivesse sido atingido por dez mil raios e trovões.

Onde estava o pingente? Ele quebrou?

Ele quebrou?!

Ele quebrou!!!

O céu está caindo!

Hongjun aparentava estar a ponto de colapsar. Ele virou e olhou para os soldados que grunhiam esparramados pelo chão, e então para o general em sua frente. O militar estava imóvel, aparentemente desacordado.

“Você está bem?” Hongjun deu alguns tapinhas em seu rosto, gritando desesperado, “Acorde! Para onde minha Lâmpada do Coração foi?!”.

O general militar usava um conjunto de armadura negra. Quando o pingente foi estilhaçado há pouco, ele foi puxado pelo furacão que irrompeu do ato e jogado na parte mais distante da ruela. O céu começava a clarear e gritos confusos podiam ser ouvidos ao longe — — alguns furiosos, outros de mulheres assustadas…

“Droga.” Um turbilhão de pensamentos passou pela cabeça de Hongjun. “O pingente sumiu, o que eu faço agora? Não, preciso me acalmar, todas os meus problemas podem ser resolvidos pela pessoa na minha frente.”

Hongjun deu seu melhor ao tentar levantar o general militar, mas sua armadura era realmente pesada demais para alguém de seu tamanho. Juntos, essa pessoa e seu uniforme pesavam quase 120 quilos, então ele descuidadamente começou a despi-lo e jogar as peças da armadura no chão com vários CLANGs. Afinal, ele ainda teve dificuldades em carregar o oficial em seus ombros, virando-se com ele e observando a parte mais profunda do beco.

No final daquela rua, havia um muro de um pátio com quase 3 metros de altura, mas ele não sabia onde iria dar. Hongjun arrastou o general primeiro antes de levantá-lo. Aquele homem devia ter aproximadamente 1,80m, e mesmo com seus pés arrastando pela terra ele permaneceu inconsciente. Depois de levá-lo até a parede, o rapaz já estava tão cansado que arfava. Ele amarrou a corda de seu gancho de escalada ao redor do oficial antes de puxá-lo pouco a pouco muro acima.

Atrás da parede havia um jardim com diversos vasos de flores derrubados. Hongjun ouviu mais perseguidores vindo atrás dele do outro lado, então rapidamente agarrou as mãos do general militar e o puxou para o jardim frontal enquanto respirava ofegante. Naquele momento, os primeiros raios de luz já podiam ser vistos e a chuva torrencial havia se transformado em uma garoa leve. A maioria das pessoas de Chang’an ainda não haviam despertado, então Hongjun deixou a casa, apenas para ver um labirinto de ruas e becos ao seu redor. Depois de virar uma esquina, haveria outra longa rua e ele instantaneamente se lamuriou, perdido.

De acordo com os números, a capital do Grande Tang atualmente possuía doze portões externos e cento e dez casas dentro da cidade, sendo projetada pelo próprio Mestre Yuwen Kai[4]. Hongjun já havia viajado por diversos vilarejos, mas nunca havia conhecido uma urbe tão grande quanto aquela, dessa forma, ele não sabia para onde ir.

“Ei! Zhao Zilong! Zhao Zilong!” O rapaz virou-se para olhar a carpa que pesava pouco mais de 1 quilo. Os olhos do yao estavam salientes, sua boca de peixe aberta e ele permaneceu imóvel mesmo após ser chamado. Ele provavelmente havia ficado inconsciente depois que o garoto caiu e sua cabeça bateu no chão.

“Acorde!” Hongjun estava desamparado diante aquela crise, ele não podia deixar aquela pessoa para trás e fugir sozinho, porém também não sabia para onde correr.

À distância, outro grupo de guardas podia ser visto e Hongjun não queria causar problemas de novo. Então, ele subitamente viu uma pequena porta aberta em uma ruela à sua frente. Uma mulher ria graciosamente do outro lado enquanto guiava um homem para fora, este que montou em um cavalo e partiu.

Hongjun arrastou o general consigo e se escondeu nas sombras para observar por um momento. Ele ouviu o som de cascos batendo no chão atrás dele novamente. Os soldados encarregados de persegui-lo aproximavam-se cada vez mais, então ele pôde apenas tomar uma decisão rápida e levantar o oficial militar, correndo em direção à porta levemente aberta.



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[1] [] Uma figura mitológica chinesa que parece um peixe com corpo de tartaruga marinha.

[2] Também chamado de Taoísta Luya, é um personagem fictício do livro “O Romance dos Deuses e Demônios” da Dinastia Ming. É conhecido por ser um andarilho que viaja pelas Cinco Montanhas e o criador das Facas Elementais Zhanxian e as Sete Flechas Cabeça de Prego.

[3] Durante esta época, não existia o elemento “terra”, pois acreditava-se que o quarto elemento era o relâmpago ou eletricidade.

[4] Outro personagem histórico, foi um grande arquiteto que ficou conhecido por projetar Chang’an em nove meses durante a Dinastia Sui, que permaneceu como capital da China durante as dinastias Han, Sui e Tang.



Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil


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