Capítulo 6 | Novel 'A Lenda do Exorcismo'

setembro 13, 2021 0

 


CAPÍTULO 6 - Vivendo Sob o Teto de Alguém

A Lenda do Exorcismo







A chuva passou, as nuvens se foram e o céu outonal de Chang’an amanheceu claro e resplandecente por milhares e milhares de quilômetros, tão azul como se tivesse acabado de ser lavado. O doce cheiro das flores de cássia viajava com a brisa enquanto Hongjun chutava o tronco de uma árvore guarda-sol, fazendo as gotas acumuladas nas folhas durante a noite caírem como um chuvisco. Ele usou aquela água para lavar seu rosto e bebeu um pouco também, depois pegou duas folhas, levou-as à boca e as soprou, fazendo um barulho engraçado.

“O que vamos fazer…” O yao carpa lamentava-se, ainda enrolado dentro da bolsa do rapaz carregando uma expressão como se o céu estivesse caindo.

“Este lugar é tão grande,” Hongjun acariciou seu estômago antes de continuar. “Vamos comer primeiro, depois decidimos o que fazer.”

“Eu me recuso a comer outra minhoca!” A carpa adicionou.

“Vamos achar carne para você,” O garoto falou. “Temos que pensar em um plano de ação com calma. Ah, como podemos ter tido tanta má sorte nessa jornada? Hm? O que é aquilo?”.

Hongjun tinha uma disposição juvenil em seu coração e, após descer a montanha e ver aquele deslumbrante mundo mortal, imediatamente deixou todos os seus problemas para trás e pegou algumas moedas de cobre, indo em direção ao mercado para achar comida. O yao carpa mais uma vez o lembrou, “Por que depois de deixar as montanhas você tem comido tudo o que vê pela frente? Tome cuidado para não comer algo ruim e estragar seu estômago.”

Porém, Hongjun apenas o ignorou e passou uma perna sobre o assento de uma barraca de comida, despreocupadamente pegando uma grande tigela de macarrão em suas mãos e a consumindo inteira. Os alimentos do mundo humano eram tão mais gostosos que os do Palácio Yaojin. Fritos, assados, tostados na panela, havia todo tipo de método para cozinhá-los, e também havia carne de cordeiro grelhado com molho de soja, bolos com cinco cores diferentes, doces de arroz glutinoso no vapor… Eles não tinham nada daquilo nas montanhas e sua viagem havia sido feita às pressas, então ele possuía somente rações para comer.

Felizmente, Qing Xiong conhecia bem sua personalidade e lhe entregou diversas pérolas antes de sair, assim durante o mês que passaram na estrada para Chang’an, Hongjun apenas seguiu o que o yao carpa lhe dizia e as trocou com caravanas de mercadores por prata, depois a prata por moedas de cobre que eram usadas para comprar comida e refrescos. Apesar de não conhecer muito sobre o mundo humano, graças às intervenções de Zhao Zilong, ele havia conseguido se manter por todo aquele tempo sem causar grandes confusões.

Hongjun sempre fora deveras inteligente e, entre percursos e paradas em sua jornada, conseguiu entender as coisas bem rápido mesmo longe de casa. No começo, não falava muito, escolhendo analisar como os outros faziam as coisas primeiro, mas com o passar do tempo ele aprendeu com o que havia visto, como naquela hora. Ao observar as pessoas entrarem em uma fila para comprar baozis, Hongjun examinou seus movimentos, depois os reproduziu, entregando algumas moedas de cobre em troca de dois bolinhos.

Ele percebeu que havia alguns artistas de rua soprando fogo com suas bocas e ficou os assistindo curiosamente por um tempo antes de dizer, “O que há de tão especial nisso? Os espirros do pai conseguem fazer bem mais.”

Zhao Zilong, “...”

Outras pessoas quebravam pedregulhos em seus peitos, torciam barras de ferro, escalavam montanhas de espada e submergiam em potes de óleo fervente. Hongjun observou cada um deles e apenas deu de ombros.

“Por que fazer tudo isso?” Não importava o que o rapaz imaginasse, ele não parecia chegar à uma conclusão.

O yao carpa respondeu, “Para ganhar dinheiro. Você não entenderia, mas o mundo humano é cheio de dificuldades.”

Os artistas acabaram suas performances e vieram pedir por trocados que o público ao redor prontamente retirou de suas bolsas e colocou no recipiente em sua frente. Hongjun os achava um tanto lamentáveis, então acabou por jogar um pérola também. O yao carpa ainda era carregado em suas costas e não conseguia ver bem o que estava acontecendo, no entanto, alguém logo gritou, “Uma Pérola Noturna Luminescente[1]!”.

A pérola do tamanho de um dedo mindinho instantaneamente causou uma comoção e havia até mesmo pessoas que não ligavam para as morais esticando suas mãos tentando pegá-las. Logo outras começaram a aglomerar e empurravam umas às outras procurando chegar no objeto, fazendo com que uma briga irrompesse entre elas. O rapaz se apressou em dizer, “Por favor, não briguem! Eu ainda tenho mais! Não briguem!”.

A carpa exclamou, “Você quer morrer? Rápido, corra!”.

O mercado foi tomado pelo caos e os guardas rapidamente apareceram. Por causa dos eventos da noite anterior, ao ver os oficiais a expressão de Hongjun mudou como se tivesse visto um fantasma e ele imediatamente virou e correu. O yao carpa não pôde evitar urgir que fosse mais rápido, comandando-o para que fosse logo ao Departamento de Exorcismo para se apresentar ao trabalho. O garoto só conseguia responder com diversos “tudo bem, tudo bem”, porém não muito depois sua atenção foi tomada novamente por um manipulador de macaco, fazendo-o parar de um lado da rua observando o animal.

“Não acha que acorrentá-lo desse jeito é ultrajante demais?”, ele falou ao homem que o comandava.

O manipulador de macaco lhe direcionou um olhar grosseiro e xingou algumas vezes. O yao carpa já estava prestes a chorar enquanto dizia, “Jovem mestre, é melhor você sair rápido daqui.”

No passado, havia um grupo de macacos que costumava viver nas Montanhas Taihang, correndo livremente por aí, mas hoje ele havia encontrado um todo acorrentado à sua frente, pequeno e raquítico, sem ter direito o que comer e ainda obrigado a se humilhar reverenciando as pessoas ao seu redor.

Hongjun deu dez ou mais passos para trás antes de se virar e jogar uma faca enquanto ninguém estava olhando. Com um som cortante ela facilmente separou a corrente que o homem segurava. O animal ficou estático a princípio, olhando para todos os lados.

“Rápido, fuja!” O rapaz murmurou para ele.

Aquele macaco rapidamente recuperou seus sentidos e saiu correndo em um átimo. Xingando até os céus, o manipulador saiu em seu encalço, causando outro tumulto.

Zhao Zilong suspirou exasperado, “Hongjun, me coloque na frente, o que exatamente você está fazendo?”.

Hongjun sorria enquanto via o macaquinho fugir, um sentimento de satisfação indiscernível crescendo em seu coração. Porém, enquanto passava pelo mercado, ele mais uma vez se deteve em seu caminho. À sua frente havia um letreiro com as palavras “Leia Quatro Carroças de Livros” de onde eruditos entravam e saíam.

“Aquilo é uma livraria?” O garoto indagou.

“Está ficando escuro…” O yao carpa protestou. “Você realmente precisa ficar passeando por aí a esta hora?”.

Hongjun não podia se importar menos com aquilo enquanto abruptamente entrava no local. Um odor massivo de peixe invadiu a loja inteira e todos os clientes viraram para olhar o rapaz com uma expressão de nojo.

“Peixes não podem entrar!” O dono do estabelecimento exclamou. “Por que está carregando um peixe por aí?”.

“Viu? Eles vão acabar te colocando para fora.” A carpa reclamou novamente.

“Eu o comprei para levar para casa e grelhá-lo,” Hongjun explicou, “Afinal, consertar um país é como cozinhar um pequeno e delicioso prato[2].”

O yao imediatamente parou de falar e Hongjun adicionou, “Estou apenas olhando, vou embora logo.”

Zhao Zilong, “...”

O gênero que mais se sobressaía dentro da loja era poesia e o rapaz abriu um livro de seletos poemas de Li Bai[3]. Instantaneamente, ele se esqueceu do horário enquanto se acomodava para começar a leitura.

 

 

 

À tarde, as mansões da cidade de Chang’an costumavam fechar suas portas. O sol do outono era escaldante e as cigarras cantavam incessantemente. Li Jinglong ainda usava as mesmas vestes com que escapara de Pingkang Li, seu torno nu e seus pés descalços enquanto se ajoelhava no pátio, encima daquela espada.

“Você… realmente acabou de destruir a reputação de seu pai e todos os seus ancestrais!”.

Feng Changqing[4] mancava de um lado para o outro, segurando em sua mão esquerda aquela plaqueta onde se lia “General Li Jinglong do Exército Longwu do Grande Tang” que havia deixado no bordel e, na direita, uma régua de madeira. Ele virou seu braço e desferiu um golpe com o objeto, fazendo o oficial soltar um murmúrio de dor enquanto outra marca vermelha como fogo alastrava-se entre seus ombros.

O homem usou a régua para acariciar a bochecha de Li Jinglong. Feng Changqing estava tão bravo que havia perdido até mesmo o fôlego e continuou, “Hoje, nas ruas de Chang’an, todos apenas comentavam de como você abandonou aqueles oficiais feridos no meio da noite e correu para Pingkang Li para se engraçar com prostitutas… você…”

Li Jinglong apenas ficou parado com sua cabeça baixa, sem dizer uma só palavra e o sênior continuou a bradar raivosamente, “Você me causou tantos problemas para conseguir esta sua posição no Exército Longwu! Não tem ao menos um pouco de consideração em seu coração?!”.

“Diga alguma coisa!”.

Feng Changqing continuou, “Você carrega essa espada enferrujada por aí e ainda pensa que é o Grande General do Exército Yulin[5]? Não pode ser um pouco mais proativo? Não?! Jogue fora essa sua arma ridícula!”.

Ele esticou a perna para chutar para longe a espada embaixo dos joelhos do outro, mas Li Jinglong continuou calado enquanto teimosamente permanecia em cima dela.

“No mínimo, hoje à noite o cachorro de seu superior virá aqui latir com o relatório de suas ações!” Feng Changqing estava tão irado que seu corpo inteiro tremia. “Durante a sessão do tribunal amanhã de manhã, você com certeza se tornará o assunto mais comentado de toda a corte imperial e onde eu deveria enfiar esta minha cara? Onde eu deveria?!”.

Todos os servos observavam calados nos corredores, divertindo-se com o sofrimento alheio ao que a cena se desenrolava em frente aos seus olhos. Havia sempre rumores percorrendo Chang’an sobre como Li Jinglong era um travesseiro bordado[6], estufado com grama por dentro. Ele havia nascido na família da tia de Feng Changqing e perdera a mãe quando ainda era pequeno. Quatro anos atrás, seu pai, Li Mou, juntou-se ao batalhão de Cen Can em direção a Saiwai e foi atingido com uma flecha dos Xiongnu. Como aquilo resultou em um grave ferimento que não foi tratado a tempo, ele também se foi.

Naquele ano, Li Jinglong tinha apenas dezesseis anos. A família de seu pai não possuía outros parentes e não havia ninguém para cuidar dele, então lentamente perdeu toda a sua herança, a princípio procurando mestres santos para lhe ensinar como se tornar um imortal e aprender cultivação, depois gastando uma enorme quantidade de ouro comprando uma estimada espada capaz de matar demônios e exterminar fantasmas, a arma do próprio Di Renjie.

No passado, quando tinha dezesseis ou dezessete anos, aquela ovelha negra, Li Jinglong, era o objeto de afeição de muitas garotas na cidade de Chang’an. Contudo, primeiramente, ele não tinha uma ocupação estável, então não conseguia fazer muito progresso em começar uma família; e segundamente, ele sempre teve uma personalidade que não deixava outras pessoas se aproximarem de si facilmente e quando via as casamenteiras nem ao menos se importava em cumprimentá-las. Agora aos vinte anos e com nenhum grande feito, a questão do casamento era a menor das preocupações.

Ele não era mais uma criança, mas também não havia começado uma família ou se solidificado em uma ocupação fixa. Então, vadiava o dia inteiro até que seu primo, Feng Changqing, conquistou o Grande Bolor[7] nas Regiões Ocidentais e ganhou o respeito do Imperador, conseguindo finalmente encontrar um posto no Exército Longwu para Li Jinglong.

Feng Changqing havia quase arrancado seu coração em frustração por causa deste inepto primo mais novo dele e quanto mais bradava, mais sua fúria crescia. Os golpes da régua vinham como trovões em uma tempestade, até que sua própria esposa viesse correndo e gritando, “Laoye[8], pare de bater nele! Pare de bater!”.

O último golpe do oficial partiu a régua de madeira em dois e a testa de Li Jinglong sangrou ao ser atingido, o líquido escorrendo por seu rosto e pingando no chão.

“Laoye, por favor, se acalme!” Madame Feng se apressou em segurar o marido pelos ombros. Depois de retornar para a corte, Feng Changqing esteve esperando o tribunal lhe atribuir uma posição oficial civil, mas este primo seu havia conseguido se tornar a chacota de toda Chang’an, fazendo com que sua reputação fosse obscurecida quando bem entendesse, até mesmo afetando sua própria carreira militar. Como poderia não ficar bravo?!

Depois que acabou de puni-lo, o sênior não ficou por perto para continuar o sermão e lentamente mancou de volta para dentro da casa ao invés disso. Somente então a Madame Feng se apressou em comandar as serviçais para trazerem um pano para limpar aquele sangue, dizendo, “Por que sua cabeça é tão inflexível? Se apenas admitisse seus erros seu primo não ficaria tão furioso com você.”

Li Jinglong permaneceu em silêncio como de costume, ficando ajoelhado ali até que a noite caísse e a luz do sol poente refletisse em seu corpo, os raios remanescentes misturando-se às manchas de sangue nos paralelepípedos azuis e se tornando um.

 

 


Embaixo do calor de final de verão, Hongjun carregava uma pilha de livros em seu braços enquanto voltava para o Mercado Leste, onde a multidão já havia dispersado e as vendas fechado. Havia algumas parcas nuvens rosadas no final do horizonte e à distância o som de tambores veio.

DONG, DONG, DONG—

“Ei, Zhao Zilong?” Hongjun alcançou suas costas e deu um tapinha na bolsa com uma mão. O yao carpa estava ali deitado com a boca aberta a princípio, imóvel enquanto dormia com os olhos arregalados, mas agora que havia sido cutucado suas guelras abriram e fecharam enquanto acordava.

“Onde fica o Departamento de Exorcismo?” O rapaz perguntou. 

“Hm, eu não sei,” o peixe respondeu. “A última vez que vim a Chang’an foi há oito anos.”

“Como você chegou aqui? Você não teve uma oportunidade de caminhar por aí?”.

“Da última eu estava pendurado em uma barraca do Mercado Leste para ser vendido e fugi de lá com um anzol na boca. Tente sair caminhando por aí numa situação como esta e veja se dá certo.”

“...”

“A carta que Lorde Qing Xiong lhe deu não tem o endereço?”.

“Deixe-me ver… onde fica Jincheng Fang?”.

“Ao norte do Mercado Oeste. Melhor irmos logo, quando os tambores pararem de tocar o toque de recolher entrará em vigor. Se ainda estivermos andando por aí seremos pegos.”

Hongjun apressou seus passos. Ir do Mercado Leste ao Mercado Oeste o fez caminhar por mais da metade de Chang’an e, enquanto o fazia, parava para pedir informações, deixando-o sem fôlego. Finalmente, quando o céu já havia escurecido, ele chegou a Jincheng Fang. As estradas daquela cidade eram amplas e constantemente se intercediam, várias das ruas principais terminavam em fangs[9] e cada uma tinha um beco ou alameda conectando-as. Então, mesmo chegando ao local desejado, Hongjun ainda assim não havia encontrado o Departamento de Exorcismo e não teve outra escolha além de caminhar em direção a uma construção com as luzes acesas.

 



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[1] Um tipo de pérola que aparece bastante nas lendas e, como seu nome indica, brilha no escuro. Dizem que eram relativamente raras e geralmente sob a proteção de Reis Dragões.

[2] Um provérbio que basicamente significa que consertar um país requer a mesma mentalidade e perseverança do que criar um prato delicioso.

[3] Li Bai, Li Po ou Li Bo foi um erudito considerado o maior poeta romântico da Dinastia Tang. É conhecido como o “poeta imortal” e aproximadamente mil poemas seus subsistem nos dias de hoje.

[4] Feng Changqing foi uma pessoa real, ele era um general da Dinastia Tang, eventualmente comissionado como governador militar.

[5] Dando a entender que sua espada é apenas para se mostrar.

[6] Bonito por fora, mas sem substância.

[7] Também historicamente conhecido como Boloristão, é uma área no Paquistão que hoje é chamada de Balawaristão.

[8] Uma expressão usada para se referir ao chefe da casa.

[9] Geralmente usado para denotar uma travessa ou alameda que dá nome a uma seção da cidade, maior que uma hutong (pequena viela tão estreita que carroças não conseguem passar). Jincheng Fang é uma dessas travessas.



Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil



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