Capítulo 24 | Novel 'Benção do Oficial do Céu'

dezembro 05, 2021 0

 


CAPÍTULO 24 - HuaLian aos Flertes; A Noite Cai no Abismo dos Pecadores

Benção do Oficial do Céu








Quanto mais o rosto na lama tentava atiçá-los, mais Xie Lian ficava desconfiado.

“Pessoal, para trás, não se aproximem dele e não ouçam uma palavra do que ele diz.”

O grupo se separou e rapidamente saiu de perto enquanto a criatura continuava a rir.

“Não há necessidade de ser tão cruel. Eu sou humano também, não vou ferir vocês.”

“Oh, você está enganado. O senhor não se parece nada com um humano!” Xie Lian pensou.

Naquele momento, um dos mercadores subitamente se esgueirou de volta para o campo, talvez pensando que ainda pudesse levar algumas ervas de volta para os feridos. Ele se abaixou para pegar o maço de folhas que havia derrubado mais cedo, porém o rosto na lama se contorceu e facilmente o encontrou, um brilho perverso iluminando seus olhos.

“Ah, não!” A mente de Xie Lian gritou enquanto o príncipe corria em direção ao homem. “Não pegue isso! Volte aqui!”

Mas era tarde demais. O rosto na lama abriu sua boca e algo longo e vermelho como sangue deslizou para fora.

Que língua gigantesca!

Xie Lian agarrou o mercador pelo colarinho e correu de volta com ele em sua cola, contudo, a língua que fora revelada era bizarramente grande e entrou direto pelo ouvido do homem!

O deus sentiu o corpo que puxava convulsionar violentamente. Os membros do mercador contorciam-se sem parar e ele soltou um breve grito agonizante antes de cair no chão. Aquela longa língua retirou um grande naco de algo sangrento por sua orelha e o trouxe de volta à boca do rosto de lama. A criatura devorava aquilo com alegria enquanto gargalhava, sua risada perturbadoramente alta preenchendo todo o território do palácio.

“HAHAHAHAHAHAHAHAHA!! TÃO BOM, TÃO BOM, TÃO DELICIOSO, TÃO DELICIOSO, TÃO DELICIOSO!! EU ESTAVA COM TANTA FOME, TANTA FOME!”

Sua voz era aguda e estridente, e ambos os globos oculares estavam esbugalhados e cheios de sangue, horríveis e obnóxios.

Aquele homem, que estava enterrado há mais de cinquenta anos no terreno de um reino inundado pelo mal já havia se moldado ao solo e se tornado algo sobre-humano. Xie Lian soltou sua mão do mercador morto, seu braço inteiro tremia. Ele estava prestes a atacar aquele monstro repulsivo quando o rosto na lama gritou novamente.

“GENERAL! GENERAL! ELES ESTÃO AQUI! ESTÃO AQUI!”

Um brado ensurdecedor, mais selvagem do que o da criatura, ecoou à distância.

Um sombra escura desceu do céu e pousou com brutalidade na frente de Xie Lian, fazendo todo o território do palácio sacudir com sua chegada. Quando lentamente se endireitou, o grupo ficou estarrecido com seu tamanho.

Aquele “homem” era imenso.

Sua face era tão severa quanto ferro, sua expressão feroz e turbulenta, como o rosto de uma besta. Uma fina camada de armadura começava em seus ombros e se estendia por no mínimo dois metros e meio. Mais do que um homem, alguns poderiam dizer que aquele indivíduo estava mais para um lobo em duas patas. Atrás dele, mais e mais figuras similares apareciam. Um, dois, três… mais de dez daqueles “homens” pularam dos telhados do palácio e os cercaram.

Cada um desses seres era tão grande quanto um cavalo, seus corpos parecidos com o de uma besta e todos carregavam em seus ombros maças cheias de espinhos pontiagudos. Poderiam até mesmo ser lobisomens e quando fecharam o cerco ao redor dos intrusos no jardim, parecia que uma ampla gaiola de ferro havia caído sobre eles.

Eram os soldados de Meia Lua!

Aqueles indivíduos emanavam uma aura negra e sem dúvidas não eram seres vivos. Xie Lian estava tenso e Ruoye já se posicionava para atacar.

Contudo, quando aqueles soldados de Meia Lua os avistaram, não correram para matá-los. Ao invés disso, jogaram suas cabeças para trás rindo histericamente, uivando em um idioma desconhecido. O som de suas palavras era medonho, gutural e suas línguas enrolavam pesadamente. Era a linguagem de Meia Lua.

Apesar de duzentos anos terem se passado e Xie Lian já ter esquecido quase tudo sobre o idioma, ele conseguira ler a Tumba do General mais cedo junto a San Lang e as palavras proferidas por aqueles soldados eram altas, simples e vulgares, então não eram difíceis de compreender.

O príncipe ouviu os brutamontes chamarem o primeiro homem de “general”, sua conversa cheia de “levem-nos daqui” e “não matem ainda”. Soltando um suspiro profundo, ele se forçou a relaxar.

O deus disse em uma voz baixa, “Pessoal, não entrem em pânico. Estes soldados de Meia Lua não nos matarão por enquanto. Parece que querem nos levar para algum outro lugar. Não façam nada impulsivo, não posso garantir que conseguirei lutar com eles. Vamos pensar no que fazer de acordo com a situação.”

Estava claro que seria um conflito árduo contra aqueles indivíduos, cada um mais parrudo do que o outro. Mesmo com Ruoye em suas mãos, sufocar apenas um deles provavelmente exigiria muito de sua força, que dirá dez. Com mortais ao seu lado, Xie Lian não tinha como fazer nada arriscado e podia apenas se manter vigilante, protegendo-os da melhor forma possível.

San Lang não disse nada e os outros estavam uma pilha de nervos. Mesmo que quisessem fazer algo impensado, não saberiam como, então apenas assentiram em concordância com lágrimas nos olhos.

Próximo a eles, o rosto na lama berrou novamente, “General! General! Por favor, tire-me daqui! Eu detive seus inimigos, deixe-me ir para casa! Eu quero ir para casa!”

Vendo os soldados de Meia Lua, a criatura ficou histérica, gritando e lamuriando-se, balbuciando disparates com algumas palavras de Meia Lua misturadas em suas frases, sem dúvidas que ele havia aprendido nos muitos anos que havia passado enterrado ali. O enorme homem de dois metros e meio que eles chamavam de “general” parecia achar a contorcida face na lama nojenta e brandiu a maça em sua direção, esmagando seu rosto e o transformando numa poça de sangue, os espinhos da arma afundando em seu cérebro. Quando retraiu o braço e tirou sua arma, o corpo inteiro da criatura foi puxado para fora, realizando seu desejo de sair dali.

No entanto, a estrutura desenterrada não era completamente humana, e sim um aterrorizante esqueleto!

Os mercadores gritaram em pavor. O rosto de lama, ensanguentado após ser esmagado com a maça, pareceu também congelar de medo ao olhar para seu próprio corpo.

“O que é isso? O QUE É ISSO?!”

“É o seu corpo,” Xie Lian o relembrou, vendo que a criatura parecia entorpecida de incredulidade.

Aquele homem esteve enterrado no deserto por cinquenta ou sessenta anos e seu corpo fertilizou as ervas shanyue até que toda sua pele e tecidos muscularem tivessem sido consumidos, restando apenas seus ossos.

“Como pode ser?” O rosto de lama choramingou. “Meu corpo não é assim! ESTE NÃO É MEU CORPO!!!”

Sua voz tremia enquanto se lamentava, mas Xie Lian só conseguia pensar nele como algo trágico e aterrorizante. O deus sacudiu a cabeça e deu as costas à criatura.

Ao seu lado, San Lang riu zombeteiramente, “Só percebeu agora como seu corpo é estranho? E quanto àquela coisa que saiu de sua boca mais cedo? Não achava aquilo peculiar?”

O homem rebateu-o imediatamente, “Aquilo não era peculiar! É apenas… uma língua maior que o normal!”

“Ah, claro. Apenas bem maior, talvez. Haha.” A voz do rapaz era repleta de escárnio. 

“É isso!” O rosto bradou. “É apenas bem maior! É só porque eu passei décadas tentando viver a base de insetos, forçando minha língua a se alongar. Deve ser por isso que ficou assim!”

Talvez ele realmente fosse um homem comum quando foi enterrado e deu seu melhor para tentar sobreviver tentando pegar insetos com sua língua, mas se tornou cada vez menos humano conforme o tempo passava, comendo mais do que apenas bichinhos, coisas bem piores. Por estar enterrado por tantos anos, entretanto, não conseguia ver sua verdadeira forma e agora nem ao menos podia aceitar que não era mais humano. 

O rosto de lama continuou a tentar convencer uma audiência que nem ao menos o escutava, “Há outras pessoas com línguas compridas, não sou só eu!”

San Lang riu novamente. Assistindo-o de perto, Xie Lian podia sentir calafrios percorrendo sua espinha ao ouvir sua risada. O príncipe só conseguia pensar que, às vezes, quando aquele rapaz sorria, havia uma certa crueldade escondida por trás de sua máscara, uma frieza que poderia cortar a pele de alguém.

“Você ainda acha que é humano?” O jovem questionou.

Ouvindo a pergunta, a criatura ficou agitada. “É claro que sou humano! Sou humano!”

O rosto de lama gritou e tentou se mover de uma vez com seus membros brancos e ossudos, como se tentasse rastejar para longe. Finalmente desenterrado, ele estava louco de felicidade, cacarejando, “Estou indo para casa! Estou indo para casa! Hahahahahaha—”

CRACK.

O “general” de Meia Lua parecia finalmente ter excedido sua paciência com os gritos agudos daquele monstro e esmagou seus ossos com apenas um passo, destruindo o que restara de sua “humanidade”.

Depois de tirar a criatura do caminho, aquele “general” rugiu para os outros. E então, todos os soldados de Meia Lua levantaram suas maças e rosnaram para o grupo de Xie Lian, levando-os para fora do palácio como um rebanho.

O príncipe ia na frente com San Lang ainda seguindo-o de perto mais atrás. Apesar de ser conduzido pelos impiedosos indivíduos, os passos do garoto ainda eram leves e casuais, como se estivesse apenas passeando. Xie Lian tentava encontrar oportunidades de conversar com ele há tempos e quando os brutamontes finalmente voltaram a falar entre si, o deus disse em uma voz baixa.

“Estes soldados de Meia Lua chamam seu líder de ‘general’. Me pergunto quem é.”

Como esperado, San Lang possuía respostas para todas as suas perguntas. “Quando o Reino de Meia Lua caiu, havia apenas um general. Seu nome, traduzido para o Hanzi[1], é Ke Mo.”

“Ke Mo?” Xie Lian balbuciou o estranho nome.

“Isso mesmo,” San Lang afirmou. “Aparentemente, é porque ele era terrivelmente fraco quando criança e sofria muitas provocações. Determinado, Ke Mo se condicionou e adquiriu sua força treinando com grandes pedras de argamassa, ganhando assim seu nome[2].”

Xie Lian massageou sua testa e pensou, “Então, ele é um bruto.”

San Lang continuou, “As lendas dizem que Ke Mo foi o mais forte guerreiro da história de Meia Lua, dois metros e meio e extremamente poderoso. Ele era um leal servo do Guoshi.”

“Mesmo depois de sua morte? Será que está nos levando para o Guoshi de Banyue, então?” Xie Lian indagou.

“Talvez,” o rapaz respondeu.

Se houvessem mais soldados de Meia Lua ali como poderiam escapar? Ninguém sabia o que Nan Feng, que havia despistado aquelas duas, estava fazendo. A erva shanyue estava em suas mão agora, mas como conseguiriam levá-las aos feridos em menos de vinte e quatro horas?

Tudo o que podiam fazer naquele momento era seguir o fluxo das coisas e se adaptar à situação conforme ela progredisse. Xie Lian tentava formar um plano enquanto caminhavam e notou que General Ke Mo os levava para um lugar remoto nos confins da fortaleza. Ao olhar para cima quando pararam, viu uma parede colossal que se estendia por metros acima deles.

Eles haviam os levado ao Abismo dos Pecadores!

Apesar de Xie Lian ter vivido por um bom tempo na área de Meia Lua, ele raramente entrava na cidade e nunca se aproximara do Abismo dos Pecadores. Olhando-o tão de perto, o coração do príncipe começou a bater loucamente.

As paredes amarelo lama possuíam um lance de escadas percorrendo seu exterior e, enquanto subiam, Xie Lian examinou o poço e tentou encontrar seu fim, finalmente entendendo por que seu coração parecia que iria saltar. Não era porque aquele era um lugar de tortura e crueldade ou por medo de ser empurrado. Eram as palpitações criadas por um poderoso feitiço em funcionamento.

Havia um forte encantamento cobrindo todo o Abismo dos Pecadores e sua magia só possuía um propósito: impedir que os que estavam lá embaixo nunca conseguissem subir à superfície.

Aquilo significava que, mesmo que uma corda ou escada fosse colocada no poço, quem quer que tentasse escapar seria embargado no meio do caminho e jogado de volta. Xie Lian impassivelmente usou as paredes como apoio enquanto subia os degraus, mas na verdade ele tentava analisar como haviam sido feitas. O deus descobriu que apesar dos muros parecerem feitos de barro ou concreto, o material utilizado era uma pedra muito mais resistente e provavelmente reforçada com uma camada de magia. 

Quando por fim chegaram ao final das escadas e pisaram na plataforma no topo do abismo, regorjearam-se na vista que se tinha dos parapeitos, que não conseguiam encontrar outra palavra para descrever além de “deslumbrante”.

A estrutura do Abismo dos Pecadores era formada por quatro grandes paredes circundando-o. Cada uma delas possuía mais de dez metros de comprimento, vinte metros de altura e cinco metros de largura. O topo delas era vazio, sem gazebos ou corrimãos, e dentro havia um profundo poço que não se podia ver o fim. Dentre a noite negra, havia apenas escuridão e um arrepiante cheiro de sangue que subia pelo ar vindo lá do fundo.

Ninguém se atreveu a olhar para baixo enquanto caminhava pelos parapeitos sem corrimão dezenas de metros acima do chão. Depois de um tempo, eles conseguiram ver o mastro que ficava no centro e onde um cadáver estava pendurado no topo. Era o mesmo que o grupo havia avistado antes. O cadáver era de uma garota pequena e vestida de preto, esfarrapada e com a cabeça pendendo para frente.

Xie Lian sabia que aquele mastro era usado especificamente para pendurar criminosos que mereciam ser envergonhados e humilhados. Geralmente, os guardas da prisão arrancariam suas roupas e os pendurariam nus, onde eles morreriam de fome e desidratação. Depois da morte, os cadáveres ficariam expostos aos ventos cortantes, queimados ao sol e apodrecidos pela chuva, e assim que se decompusessem o suficiente, cairiam por si mesmos no abismo. Uma visão excessivamente terrível, de fato.

O cadáver da garota não parecia estar deteriorado, então não deveria fazer tanto tempo que ela havia morrido. Talvez fosse uma moradora local que os soldados haviam capturado, mas fazer algo tão vulgar com uma jovem donzela fazia Xie Lian se sentir completamente enojado. Os rostos de A-Zhao, Tian Sheng e dos outros mercadores tornaram-se brancos como papel vendo aquela cena, fazendo-os hesitar em seus passos, com medo de continuar adiante. Ke Mo não se importou em empurrá-los para que andassem, porém virou-se em direção ao poço e uivou.

“Por que ele está uivando?” Xie Lian indagou-se internamente, contudo, sua pergunta logo foi respondida.

Das profundezas do abismo escuro veio um coro de rugidos em resposta aos uivos de Ke Mo. Eram como rosnados de bestas, foles de tsunamis, lamentos de monstros, centenas e milhares de gritos explodindo em seus ouvidos. As paredes tremeram com o barulho, fazendo com que aqueles que estavam nos parapeitos perdessem o equilíbrio. Xie Lian conseguia claramente ouvir o som de rochas e destroços caindo ao redor.

Apenas criminosos eram jogados no Abismo dos Pecadores. Seriam aquelas as almas dos mortos respondendo ao chamado de Ke Mo?

O homem uivou novamente e Xie Lian tentou escutar com mais atenção. Desta vez, Ke Mo não estava fazendo ruídos sem sentido e aquilo também não podia ser classificado como xingamentos. Na verdade, parecia que os estava encorajando e o príncipe tinha bastante certeza de que conseguia ouvir as palavras “meus irmãos”.

Depois de uivar, Ke Mo virou-se para os soldados que guardavam Xie Lian e os outros e rugiu mais um comando.

Xie Lian entendeu o que ele dissera. O general acabara de falar “Apenas joguem dois deles ali e detenham o resto.”

Os outros podiam não compreender o que estava sendo dito, mas as intenções daqueles soldados não eram difíceis de adivinhar. Todos pareciam pálidos como fantasmas e Xie Lian até mesmo viu que dois deles não conseguiam mais se manter em pé, tremendo aterrorizados.

Ele deu um passo à frente e disse em uma voz baixa, “Não se preocupem. Se algo acontecer, eu avançarei primeiro.”

Xie Lian pensava que, se realmente tivessem de ser jogados, então ele mesmo deveria ir primeiro e checar as coisas lá embaixo. Não poderia ter nada pior que cobras venenosas e bestas, ou fantasmas ameaçadores. O deus não morreria ao cair, nem podia ser morto com veneno, não bateria as botas por picadas, nem mesmo sendo atingido diversas vezes. Contanto que não fosse um tanque de água que dissolvesse cadáveres, por exemplo, seu corpo não receberia um dano tão horrível.

Além disso, Ruoye estava ao seu lado. Mesmo que não fosse capaz de escapar do feitiço de proteção sozinho, ele ainda poderia usá-la para pegar os outros que caíssem atrás de si. Ke Mo dissera “detenham o resto”, o que significava que os outros deveriam estar seguros ao menos temporariamente. Afinal, não era fácil caçar por comida no Deserto de Gobi, então eles provavelmente os degustariam sem pressa ao invés de os devorarem de uma só vez! Xie Lian acalmou seus pensamentos, mas ao seu lado havia alguém que não conseguia mais segurar sua respiração.

Desde que haviam chegado ao topo do Abismo dos Pecadores, além de San Lang, que não parecia nada diferente de seu estado normal, todo o resto do grupo tremia de medo incessantemente, especialmente A-Zhao. Ele deveria estar pensando que, se fosse para morrer, então morreria lutando. Assim, o rapaz cerrou os punhos e correu em direção a Ke Mo!

A cena fazia parecer como se A-Zhao estivesse pronto para arrastar Ke Mo consigo abismo abaixo. O general era um homem gigantesco, forte como uma torre de aço, mas mesmo ele foi empurrado três passos para trás com o ataque surpresa desesperado de A-Zhao. Contudo, após se recuperar, ele rugiu em fúria e imediatamente jogou o rapaz na escuridão. Todos começaram a gritar e Xie Lian chamou pelo jovem também.

“A-Zhao!”

E então, de dentro do poço vieram gritos de deleite e sons violentos de pele sendo rasgadas, como bestas famintas lutando por uma refeição. Era fácil de imaginar por aqueles barulhos que o jovem A-Zhao nunca sobreviveria.

Xie Lian não esperava por aquele curso de ações também e parecia embasbacado. Ele tinha suspeitas de que A-Zhao era subordinado do Guoshi de Banyue, propositalmente guiando viajantes para dentro das ruínas. O príncipe também imaginara que ele era a pessoa que havia estado ali há “cinquenta ou sessenta anos”, mas o rapaz acabou sendo o primeiro a ser morto. Com aquela queda, como ainda poderia estar vivo?

Será que estava fingindo sua própria morte? Mas agora que estavam todos escravizados ao comando dos soldados de Meia Lua, se A-Zhao fosse realmente subordinado do Guoshi de Banyue, ele estaria acima deles e poderia muito bem revelar sua verdadeira identidade em toda a sua glória sem precisar fazer algo assim. Por que A-Zhao correria em direção a Ke Mo e morreria daquela forma insignificante?

Os pensamentos de Xie Lian pareciam formar nós novamente e os soldados de Meia Lua começavam a procurar por sua próxima vítima. Ke Mo os analisou com atenção e apontou para Tian Sheng. Assim, outro soldado se moveu em sua direção e abriu suas mãos, pronto para empurrá-lo.

Aterrorizado, Tian Sheng caiu de joelhos e exclamou, “AH! SOCORRO! NÃO ME LEVEM! EU…”

Sem mais tempo para pensar, Xie Lian deu um passo à frente e disse no idioma de Meia Lua, “Espere, General.”

Ke Mo parecia chocado ao ouvir as palavras deixarem a boca do príncipe e fez um movimento com as mãos, impedindo os soldados de continuarem. “Você sabe falar nossa língua? De onde você é?”

“Eu sou das Terras Centrais,” o deus respondeu.

Ele não se importaria em mentir e dizer que também era um cidadão de Meia Lua, mas como suas habilidades no idioma estavam bem enferrujadas, não havia como manter a farsa se continuassem conversando por mais tempo. Além disso, também era óbvio por sua aparência que ele não era dali. A pergunta de Ke Mo foi simplesmente porque estava confuso, mas o povo de Meia Lua detestava mentiras mais do que tudo, então se a verdade sobre Xie Lian fosse revelada, os resultados seriam piores ainda.

“Terras Centrais?” Ke Mo questionou. “Descendentes de Yong’an?”

“Não,” Xie Lian respondeu. “O Reino de Yong’an caiu há tempos. Não existe mais uma terra chamada Yong’an.”

Porém, para aqueles de Meia Lua, todos que vinham das Terras Centrais podiam ser considerados da mesma laia, todos eram relacionados aos descendentes de Yong’an. Eles haviam sido aniquilados pelo exército de Yong’an, então no momento em que ouviram de onde Xie Lian era, o rosto obscuro de Ke Mo imediatamente adquiriu uma expressão de fúria e muitos outros soldados de Meia Lua também começaram a rugir, xingando-o vulgarmente. Mas não era nada além de palavras como “energúmeno das Terras Centrais!” e “jogue-o lá para baixo!”, então Xie Lian não podia se importar menos.

Ke Mo demandou, “Nosso reino desapareceu no Deserto de Gobi há mais de duzentos anos. Você não é um dos nossos, como sabe nossa língua? Quem é você?”

O príncipe não pôde evitar olhar de relance para o rapaz plácido ao seu lado, mentalmente esperando que, caso suas mentiras caíssem por terra depois, talvez pudesse desavergonhadamente pedir para que San Lang o salvasse. Ele limpou sua garganta e estava prestes a começar a falar uma trilha de baboseiras quando, naquele momento, outra série de rugidos enraivecidos soou lá de baixo.

Parecia que o que quer que estivesse lá embaixo já havia acabado de desmembrar A-Zhao e estava pedindo por mais, usando suas lamúrias para transmitir sua sede por sangue fresco. Ke Mo balançou a mão novamente, pronto para jogar Tian Sheng, quando Xie Lian se pronunciou.

“General, por favor, deixe-me ir primeiro.”

Ke Mo nunca havia presenciado alguém fazer aquele pedido antes e seus olhos arregalaram-se como duas bagas. Ele questionou desacreditado, “Deixar você ir primeiro? Por quê??”

Xie Lian não podia revelar a verdade e dizer que era porque não estava assustado. O deus pensou por um segundo e criou uma desculpa lógica, “General, estes mercadores são inocentes. Há até mesmo uma criança entre eles!”

Ke Mo riu entredentes. “Quando seu exército aniquilou meu reino, vocês não pensaram nos mercadores inocentes e nas crianças também!”

A queda do Reino de Meia Lua havia sido há mais de duzentos anos e, desde então, incontáveis dinastias vieram e foram-se. Porém, aqueles eram os mortos para os quais o tempo havia parado. Seu ódio e rancor não eram coisas que desapareciam com o passar dos anos.

Ke Mo continuou, “Você é muito suspeito, eu ainda preciso interrogá-lo. Você não vai lá para baixo, joguem outra pessoa!”

Não havia o que fazer naquele caso. Xie Lian já estava preparado para pular caso todo o resto falhasse de qualquer forma. Atrás dele, San Lang deu um passo à frente.

Com seus braços cruzados, o jovem despreocupadamente olhava para o abismo escuro e sem fim com um olhar intrigante. Aquilo não era um bom sinal.

O príncipe o chamou, “San Lang?”

Ouvindo sua voz, San Lang olhou por cima do ombro e disse suavemente, “Está tudo bem.”

O rapaz deu outro passo adiante e pausou perigosamente perto da borda. O coração e a cabeça de Xie Lian imediatamente começaram a martelar.

Ele chamou-o novamente, “Espere, San Lang, não se mexa!”

Naquela altura, na beira do precipício, as roupas vermelhas do jovem dançavam na brisa noturna. San Lang olhou para o príncipe com um sorriso, “Não fique com medo.”

“Você… Volte aqui primeiro. Volte aqui e eu não ficarei com medo,” Xie Lian disse.

“Não se preocupe. Eu apenas vou me retirar por um momento. Nos veremos de novo em breve,” o outro afirmou.

“Não—”

Antes que terminasse de falar, o garoto deu outro passo à frente, os braços ainda cruzados, e com um pequeno salto, desapareceu dentro do abismo.

No momento em que ele pulou, Ruoye voou do pulso de Xie Lian, como um relâmpago branco cruzando o céu, tentando agarrar-se ao corpo do rapaz. No entanto, a queda fora repentina e Ruoye retornou sem ao menos tocar em um pedaço de tecido.

Xie Lian caiu de joelhos na beirada da muralha e berrou, “SAN LANG!!!”

Sem resposta. Sem barulho. Depois que o jovem pulou, nem ao menos um ruído foi ouvido!

Ao seu lado, vários soldados de Meia Lua começaram a bradar em seu lugar, todos incrédulos e entorpecidos. O que estava acontecendo naquele dia? No passado, eles precisavam caçar suas presas e jogá-las no abismo, mas naquela noite as presas lutavam para ver quem pularia primeiro e, quando impedidas, jogavam-se do mesmo jeito?

General Ke Mo gritou para retomar o controle sobre seus soldados. Quanto a Xie Lian, quando viu que Ruoye não conseguira salvar San Lang, nem pensou duas vezes antes de pular do muro por si mesmo. Mas quando seu corpo ainda estava em meio ao salto, o colarinho de seus robes foi agarrado e ele ficou suspenso no ar.

Aparentemente, General Ke Mo viu que ele também saltaria e esticou seu braço para agarrar o príncipe, impedindo sua queda.

“Se quer se juntar a mim, não vejo problemas nisso!” Xie Lian pensou e, como uma cobra, Ruoye se lançou mais uma vez no ar e se enrolou no braço de Ke Mo, procedendo em envolver seu corpo inteiro.

Ke Mo percebeu que a faixa de seda era imprevisivelmente mortal e espirituosa, e seu rosto se contorceu enquanto as veias inchavam em seu pescoço. Seus músculos instantaneamente dobraram de tamanho, tentando rasgar o tecido que o cobria por todo lugar. Xie Lian estava no meio do impasse com o general quando subitamente algo chamou sua atenção pelo canto dos olhos.

O cadáver pendurado no mastro de repente tremeu e levemente levantou sua cabeça.

O grupo de soldados de Meia Lua também percebeu a movimentação e começou a gritar, agitando suas maças como se quisessem atingi-la. Mas a garota de preto de alguma forma conseguiu se soltar e saltou do mastro, correndo em direção a eles.

Ela era como uma rajada negra de vento soprando entre os beirais, rápida e perversa. Os soldados não conseguiram manter o equilíbrio e logo foram jogados para o abismo um por um, berrando em desespero. Furioso, Ke Mo bradou todo tipo de profanidade em sua direção, muitas das quais eram gírias que Xie Lian não conseguia compreender bem, mas pôde entender as primeiras palavras:

“É aquela vadia de novo!”

Os xingamentos cessaram um segundo depois, porque o deus repentinamente o puxou e caiu para trás trazendo Ke Mo junto.

Para dentro do inescapável Abismo dos Pecadores!

Enquanto caíam, Ke Mo rugiu com violência, quase estourando os tímpanos de Xie Lian que teve de chamar Ruoye de volta e desferir um chute no general para afastá-lo, protegendo seus ouvidos. Depois, comandou que Ruoye voasse para cima e se agarrasse em qualquer coisa que o impedisse de ir mais para baixo ou ao menos prevenisse que o impacto fosse muito profundo quando atingisse o solo. Porém, o Abismo dos Pecadores não fora construído para salvar alguém, então não havia nada para se segurar. Ele pensou que iria criar uma cratera e ser esmagado como uma panqueca como já acontecera diversas vezes antes quando, subitamente, em meio à escuridão, o deus viu um risco prateado.

No instante seguinte, um par de mãos gentilmente o segurou.

Quem quer que fosse aquele, havia o capturado perfeitamente, como se a pessoa estivesse esperando por sua chegada no fundo do precipício. Com uma mão atrás de suas costas, segurando seus ombros, e outra embaixo de seus joelhos, sustentando seu peso, a gravidade mortal da queda fora dissolvida como se não fosse nada. Ainda atordoado e confuso por ter caído de tão alto, Xie Lian inconscientemente segurou firme nos ombros daquela pessoa.

Ele sussurrou, “San Lang?”

O poço era envolto pela escuridão, nada podia ser visto, inclusive aquela pessoa que o segurava. Mas Xie Lian ainda chamou por seu nome. A pessoa não respondeu, então o príncipe o tocou e apertou seu peito e ombros apenas para ter certeza.

“San Lang, é você?”

Talvez fosse porque ali no fundo do abismo o cheiro inebriante de sangue era forte e desorientador, mas Xie Lian continuou a apalpar a pessoa que o segurava, até que seus dedos resvalassem em um duro e forte pomo de Adão. Em choque, ele voltou a si mesmo e imediatamente se repreendeu, trazendo suas mãos de volta. O que ele estava fazendo??

“É você, não é, San Lang? Você está bem? Está machucado?”

Um instante se passou antes que a voz grave do rapaz viesse de algum lugar próximo a si. “Estou bem.”

Por alguma razão, Xie Lian sentia que aquela voz era curiosamente diferente da que escutara antes.







[1] [汉字] ou [], também conhecidos como sinogramas, são os caracteres Han utilizados como sistema de escrita chinês e japonês (pelo alfabeto kanji), além de outras línguas como o dong.

[2] [刻磨] (Ke Mo) na escrita Hanzi, onde significa ‘entalhar’ ou ‘cortar’ e significa ‘afiar’ ou ‘polir’.


Traduzido por: Mia

Revisado por: Mia

TGCF Brasil



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